1. Homenagem a Luciano Cordeiro

A mentalidade histórica, isto é, a tendência para considerar os factos sob a categoria do transato, descobrindo no presente a matriz do passado, parece ser uma das constantes da nossa conformação intelectual, dado que em todas as épocas e circunstâncias a história tem sido entre nós a disciplina mais cultivada.

Não falta quem tenha visto no facto a incapacidade de soltar voos livres, sem peias, para aquelas zonas do pensamento onde só se entra com a audácia da originalidade e com a tenacidade do esforço, filiando-o uns na deficiência nativa, outras na deformação de uma educação mal orientada. Sem entrar no fundo da questão, densa de dificuldades e de consequências de vária ordem, creio que esta tendência do nosso espírito resulta dos imperativos do sentimento pátrio e das exigências vitais da nossa sociedade, que sempre atribuiu proeminente valor pragmático à história.

Na Idade Média, durante a primeira dinastia, o processo espiritual da separação de fronteiras impôs o cultivo da crónica, porque é pelo reconto histórico de lendas, de tradições, de episódios e de feitas heroicos que se desperta e forja a consciência da diferenciação e da autonomia; olhos fitos na própria existência, sempre mais ou menos ameaçada, a consciência intelectual da nação teve principalmente em conta a eficácia da governação pública e o pensamento pragmático, situando em plano secundário as subtilezas escolásticas de letrados. Com a dinastia de Aviz a vida espiritual tornou-se mais fina, mais complexa e compreensiva. Para além dos historiadores, que agora fazem a sua entrada com o incomparável Pernão Lopes e se nos apresentam mais esclarecidos e de mais vasto horizonte, surgem moralistas e pensadores da política, isto é, despertam-se alguns contrastes entre o que é e o que deve ser, e começa a destacar-se a missão de formar e de desenvolver as gerações futuras, mas continua, não obstante, a prezar-se e a exigir-se aos bem dotados que aplicassem as suas capacidades intelectuais pragmaticamente, no sentido da utilidade nacional, e não especulativamente, na posição universalista e intemporal: Pernão Lopes fala algures no Mestre de Aviz, que “enviou Nun'Alvares e seus companheiros a pregar pelo reino o evangelho português”.

Depois do século XVI este imperativo da nossa constituição ético--cultural complicou-se e revestiu formas diversas, pela especialização crescente da atividade, sem que, no entanto, se lhe alterasse a substância, até mesmo nos tempos revoltos em que a vida pública rumou para novos ideais e para novas esperanças. Por isso, à maneira de remate ou de corolário do que vimos dizendo, pode asseverar-se que em todas as épocas abundaram sempre os indivíduos de sensibilidade ou de pensamento político e os cultores da história, não raro com feição militante, a investigação científica recaiu predominantemente sobre objetos ou problemas relacionados com as necessidades da vida nacional, e na reflexão filosófica só lograram significação relevante as conceções da vida e não os sistemas especulativos, o que aliás se contraprova com a existência na nossa língua de um vocabulário rico e denso de sentido axiológico em contraste com a escassez mirrada do léxico metafísico.

É a recordação de um homem, cujo espírito brotou desta tradição vivaz e em cuja obra ela flui pujante, esclarecida, atual, que hoje se rememora nesta Casa, que ele, como ninguém, ajudou a fundar, a desenvolver e a tornar respeitada e querida, pranteando ainda uns, porventura, neste momento, a perda do amigo, sentindo outros a sua presença espiritual nas responsabilidades dos cargos que exercem e todos reconhecendo, afinal, com gratidão, o valor do exemplo que nos legou.

O primeiro período da vida de Luciano Cordeiro vai do nascimento em 21 de Julho de 1844, em Mirandela, a 1875, aos 31 anos, isto é, ao advento da maturidade. É. o período da formação, de ensaios e de tentativas, de atividade dispersa e de ambições malogradas, de arrojos atrevidos e de afirmações petulantes, mas que aos 21 anos já desfralda, com altivez, o estandarte do que será divisa e estímulo da sua vida inteira: a fé sem mancha nos destinos de Portugal independente. Nesses dias nevoentos da política nacional, quando se dizia vacilar a espada de um velho condotieri e sofisticar a inteligência privilegiada de quem haveria de ser glória da tribuna académica, Luciano Cordeiro foi, se não erro, o mais moço dos lidadores da campanha anti-ibérica, com o opúsculo Sim. Resposta aos que nos preguntam se queremos continuar a ser portugueses, impresso em Lisboa, em 1865. O jovem que então era, de espírito aberto aos mais avançados ideais democráticos, com o prazer de afirmar e a coragem de contradizer, como frequentemente testemunhariam os seus artigos da Revolução de Setembro e o vibrante panfleto de 1868, A Ordem do dia. Aos parlamentares futuros, não se deixou contaminar e muito menos cegar com a poeirada das novidades. O rasgo era coerente em quem, como ele, avaliando o vigor físico pela coragem moral, vestira, enquanto a saúde lhe permitira, de 1862 a 1865, a farda da Companhia dos Guarda-Marinhas, ou, por outras palavras, sentira a atração da carreira que sempre seduziu os nossos rapazes de ânimo viril, de orgulho patriótico e de certa altivez mental, mas no lance ele brotou do âmago da sua personalidade, onde a flama do patriotismo crepitou, sem jamais vacilar. Abandonando a carreira naval, após a primeira viagem de instrução, e trocando o estudo das ciências exatas, para o que estava preparado com o exame de admissão à Escola Politécnica, pelo das disciplinas humanas, frequenta de 1865 a 1867 — sabe Deus com que dificuldades materiais! — o Curso Superior de Letras, escola respeitável pelo fulgor do talento de alguns dos seus mestres e pela objetividade escrupulosa com que subtraíram algumas das chamadas ciências morais às dedadas da curiosidade atrevida e palavrosa.

É uma nova forma de atividade que para ele começa, paralela à do jornalista, e cujas primeiras e mais cálidas manifestações se encontram no opúsculo Delenda Thibur, de 1866, com o qual se coloca ao lado de Antero na famosa querela da “Escola coimbrã”, no Livro de Crítica. Arte e literatura portuguesa de hoje, de 1869, seguido em 1871 do Segundo livro de crítica. Livros, quadros e palcos. Como a maior parte dos seus contemporâneos, Luciano Cordeiro fora procurar à literatura francesa o que não encontrara na nossa própria e munindo-se de algumas ideias gerais e normativas, colhidas designadamente em Proudhon, em Taine, em Teófilo Gauthier, convenceu-se ingenuamente ser isto o bastante para se tornar o Aristarco da arte portuguesa sua contemporânea. Legou-nos, assim, umas páginas de crítica literária e artística onde a precipitação alterna com a exígua densidade de juízo e a frase declamatória ocupa o lugar do raciocínio consistente; no entanto, o que elas perderam em valor pessoal lograram-no como expressão epocal e enfática de crenças e de esperanças, e apesar de tudo com lugar privativo na evolução histórica da crítica entre nós.

O entusiasmo que os livros de Crítica denunciam revela claramente que o cultivo das letras lhe era incomparavelmente mais agradável e consentâneo com a sua maneira de ser que o estudo das ciências. Não é fácil conjeturar a influência que a escolaridade no Curso Superior de Letras exerceu no seu espírito, nem os germes de ideias e de aspirações que as lições nele depositaram. É de crer, no entanto, que o magistério superior se lhe afigurasse a profissão mais propícia à realização das suas ambições literárias e talvez por isso, em 1872, já professor de filosofia e de literatura no Colégio Militar, concorreu com Teófilo Braga e Manuel Pinheiro Chagas à cadeira de Literaturas modernas do Curso em que anos antes se diplomara. Foi este um concurso famoso pela categoria intelectual dos concorrentes, pelas parcialidades aguerridas do público e, sobretudo, porque dele se pode datar o monumento que é a História da Literatura Portuguesa, de Teófilo Braga, de alicerces nem sempre sólidos e cujas páginas abafam pelo ar confinado de uma pretensa positividade, mas que, pela mole imensa de factos que removeu e pelo alento patriótico que a percorre, subsistirá como expressão primeira e basilar da ciência das letras entre nós. Luciano Cordeiro não possuía a erudição de Teófilo nem o fulgor verbal e imaginativo de Pinheiro Chagas, e o breve opúsculo que apresentara como tese, intitulado Da literatura como revelação social, apenas denunciava a pressa com que havia sido redigido. Urna coisa, no entanto, o singularizava em relação aos seus opositores: a associação do espírito crítico e do sentido dos valores estéticos, requisitos indispensáveis do historiador literário, à disciplina mental das ciências exatas, da sua primeira formação. Sob este ponto de vista não sofre, evidentemente, comparação com Latino Coelho, com Andrade Corvo, com o Conde de Ficalho, mas o breve convívio propedêutico com as matemáticas deu-lhe sobre Teófilo mais penetrante sentido da exatidão dos factos e sobre Pinheiro Chagas mais coerência na estruturação lógica do raciocínio.


?>
Vamos corrigir esse problema