1. Homenagem a Luciano Cordeiro

Teófilo foi, e justamente, o vencedor deste concurso célebre, em que se jogou para uma geração inteira a constituição objetiva da nossa história literária, mas o malogro de Luciano Cordeiro não lhe foi prejudicial ao desenvolvimento do espírito. Pelo contrário; o exame de consciência, que necessariamente suscitou, e o brio, que naturalmente feriu, provocaram o que pode chamar-se a conversão da sua inteligência aos ideais que lhe modelaram a personalidade definitiva.

Na quadra em que escrevera tumultuariamente os Livros de Crítica e o demónio da facilidade lhe segredava que concorresse ao Curso Superior de Letras, pode dizer-se que pensava abundantemente com palavras e sobre palavras — tão abundantemente que certas páginas têm por vezes o desconforto dos quartos vazios. Em 1873, porém, meses depois do concurso, impulsionado porventura pelo sentimento de que devia justificar a posição docente que ocupava, publicou uns Apontamentos para a história do Colégio Militar, para o que aliás havia sido nomeado com outros colegas deste estabelecimento em Julho de 1872. No conjunto da nossa bibliografia histórico-pedagógica este escrito tem um lugar de relevo por se haver ocupado dos planos de estudos, frequentemente descurados pelas notícias biográficas e de organização externa, mas o que a meu ver o singulariza é a manifestação incipiente de um espírito que em vez do encanto formal da sucessão das palavras investiga factos e sobre eles raciocina e constrói diretamente. É, o erudito que se anuncia, na atitude intelectual e nos métodos de trabalho, e cuja obra apenas irá depender da incitação das circunstâncias propícias, da ação do tempo e das vigílias. Entretanto, empreende a visita a vários países europeus, e talvez como despedida das ambições literárias da juventude deu-nos em 1874 os Estros e Palcos e o livro com as impressões sobre a Espanha e a França, e em 1875 o das relativas à França, à Baviera, à Áustria e à Itália, e ainda a tradução da Pepita Jiménez de Juan Valera, que poucos anos depois assistiria em Portugal como ministro e cujo epistolário com Menéndez y Pelayo encerra juízos de permanente advertência.

Com as Viagens termina o primeiro período da vida de Luciano Cordeiro, de ensaios e tentames; outro lhe vai suceder, sensivelmente de igual duração, mas com a pujança disciplinada da maturidade, com o digno sentido das responsabilidades, com o nobre anelo de conciliar e de exortar, com a ambição honrada e leal de edificar solidamente, sem o salitre da vaidade nem o verdete do rancor. Num lugar, preferentemente, se exercita: a Sociedade de Geografia, e uma palavra densa o define: o patriotismo, porque todas as manifestações do seu talento, a partir de então, quer acreditem o geógrafo ou o historiador, quer afiancem o literato ou o crítico, quer enalteçam o colonialista ou o organizador, se expandiram quase sempre nesta Sociedade e foram a incidência do dinamismo constante do sentimento que, como já recordámos, ditou as primeiras páginas impressas da sua pena fecunda.

Evoquemos rapidamente o ambiente dos primeiros anos desse inolvidável derradeiro quartel do século passado. Reinava D. Luís, o mais honrado respeitador da Carta Constitucional, cujos benefícios, que eram os benefícios da liberdade, derramavam pelo país a alegria do viver estável e tranquilo, e governava Fontes, cujo Ministério proporcionaria as condições propícias ao estabelecimento do rotativismo, pondo fim ao regime dos pequenos partidos em que se vivera depois da Regeneração, especialmente após a Janeirinha, e que, apesar de retardador e de instável no exercício do poder, gerou, talvez como nenhum outro no decurso da nossa história, uma plêiade notabilíssima de dirigentes civilistas, educados nos debates do Parlamento e no trabalho das comissões. A esta data, o fontismo significava, a um tempo, a confiança no progresso social mediante os melhoramentos materiais e a política da estabilidade e da resistência contra as inovações; por isso despertou a política do movimento e das reivindicações democráticas, atirando os descontentes, sobretudo a partir de 1876, para as lutas dentro e fora da Monarquia, pois é deste ano que data o partido republicano, em cujo altar Luciano Cordeiro queimou alguns grãos de incenso.

Disraeli convertia por este tempo os seus compatriotas à mentalidade imperial, a sua máxima obra, e as grandes nações, competindo no domínio industrial, na conquista de novos mercados e na exploração das fontes de matérias-primas na África e na Ásia, numa interpretação política da teoria darwinista, que às vezes se coonestava com fins humanitários, não hesitavam em arvorar a dura lei do mais forte, desterrando direitos e espoliando os fracos.

Cientificamente, esta é a época em que depois do século XVII, que foi o século do génio, mais progressos se levaram a cabo, quantitativa e qualitativamente; e como na era de Quinhentos a Europa reviveu as emoções romanescas das viagens temerárias e dos descobrimentos geográficos, orientados agora para as regiões inexploradas do interior dos continentes. Uma vez mais, então, a razão se encontrou perante a revelação súbita de uma massa vastíssima de factos e de incitações, e como no passado, por exemplo, no século XIII, no trânsito do século XV para o XVI, no século XVII, as consequências foram multíplices: cientificamente, impôs-se a revisão das explicações existentes e o reajuste das teorias aos novos planos da realidade; política e economicamente, despertou-se a avidez da posse e da exploração das novas riquezas, e socialmente, o isolamento relativo em que as nações haviam vivido na primeira metade do século cedeu o lugar ao intercâmbio científico, ao estabelecimento de sociedades culturais, à realização de congressos, numa palavra à mais intensa e mais extensa internacionalização da ciência e dos seus cultores.

Pelo que à geografia respeita, pois é no caso a ciência que mais importa considerar, levam-se a cabo corajosas explorações continentais e polares. Todas feriram, mais ou menos, as imaginações e algumas lograram êxitos notáveis, como as de Wallace no Arquipélago Malaio, de 1854 a 1862, e de Richtofen, na China e na Manchúria, de 1868 a 1872. A constituição científica da geografia e o desenvolvimento das ciências que lhe são auxiliares seguiu-se logicamente aos informes dos exploradores; e assim, após Alexandre de Humboldt, o iniciador das viagens científicas no século XIX e que no Cosmos nos deu uma admirável interpretação do progresso das relações do homem com a natureza, surgem Ritter, o fundador da geografia como ciência, com a Erdkunde, cujo último volume aparecera em 1859, Reclus, com La Terre, publicada em 1869, e Peschel, com os Neue Probleme der vergleichenden Erdkunde, publicados em 1870, para só citar obras capitais, e, finalmente, como remate do interesse e do alcance dos novos conhecimentos, a realização em Bruxelas, em Agosto de 1871, do primeiro Congresso Internacional das Ciências Geográficas, Cosmográficas e Comerciais.

De todos os empreendimentos geográficos, tatu sensu, levados a cabo nos diversos territórios inexplorados, nenhuns falaram tanto ao nosso sentimento e despertaram tão vibrantemente a consciência dos nossos direitos de descobridores e dos nossos interesses de colonizadores e primeiros ocupantes como os africanos. Restringindo-me apenas a estes, como tenho feito até agora e às três décadas que vão dos meados do século a 1875, recordarei somente que Ricardo Burton e João Speke atingiram o Tanganica em 1857, alcançando Speke no ano imediato o Vitória Nianza; Enrique Barth, em 1853, chegou a Tomboctu; Eduardo Vogel, em 1855, ao Lago Tchad; Gerhard Rohlfs empreendeu em 1867 uma viagem ao Saará e em 1873 outra ao deserto da Líbia, e Gustavo Nachtigal, de 1869 a 1874, pelo Saará oriental e pelo Tibesti; Schweinfurt explora, de 1868 a 1871, a região dos Monbutos; Du Chailla, de 1856 a 1865, o interland do Gabão; Carlos Mauch o Transvaal, e David Livingstone, de 1848 a 1873, torna-se famoso pela exploração do curso do Zambeze e com Stanley, em 1871, e Cameron, em 1873, tem o seu nome ligado ao reconhecimento da região do Congo.


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