1. Homenagem a Luciano Cordeiro

Nesta falange de heroicos exploradores, Portugal contava especialmente Silva Porto com a travessia de 1852 a 1854, mas com ser memorável não bastava ao povo que primeiramente revelara o conhecimento do contorno do continente africano, desterrara algumas conceções ptolemaicas, designadamente a dos limites da imaginária “Etiópia arenosa”, e dissipara a crença unânime na inabitabilidade da zona tórrida. Impunha-se-lhe o dever de atualizar e completar a gesta de Quatrocentos, devassando as terras remotas do interior como séculos antes havia descoberto as costas e os ancoradouros, não tolerando, portanto, que os recém-vindos lhe arrebatassem completamente o facho da iniciativa. Demais, se os resultados das viagens e das explorações trouxeram consigo, sempre ou quase sempre, novos conhecimentos de alcance científico, a ciência, não obstante, foi alheia aos propósitos íntimos de grande parte das que se levaram a cabo na África, mormente nas regiões lindantes com as nossas colónias ou afetas à bacia dos grandes rios que as valorizavam economicamente, designadamente como meio de transporte. É que sobre o explorador, o viajante, o próprio missionário, estava o bandeirante de uma política, que desdenhava do princípio dos direitos históricos para vindicar o da efetividade da ocupação e coonestava a rapacidade de alguns interesses com a grandeza moral de princípios humanitários. Desde então as circunstâncias ditaram que a nossa política externa gravitasse em torno dos problemas ultramarinos e porque o clarividente e sagaz Andrade Corvo, ministro dos Estrangeiros, desejasse resolvê-los, começando em 1875 pelo de Cabinda, o mais candente, ao imperativo um pouco vago da nossa história acrescia o atual e preciso da reivindicação de legítimos direitos ameaçados, do reconhecimento universal da segurança da nossa soberania e influência.

Finalmente, vivia-se ao tempo em franco e por vezes clamoroso regime de opinião pública, articulada organicamente pelos partidos políticos, e consequentemente, perante a aleivosia de certas campanhas de imprensa mundial, impunha-se ia realização de atos que os grandes jornais de todos os países relatassem sem prévia passagem pela caixa, assim como a devoção cívica de indivíduos e de coletividades que esclarecessem e guiassem a opinião interna. Dos primeiros, para só evocar os de mais retumbante fama, se incumbiram Serpa Pinto, Capelo e Ivens; dos segundos, sem menoscabo dos serviços e benemerências de relevantíssimos contemporâneos, os louros sempre verdes do nosso reconhecimento vão para esta Sociedade de Geografia, foco e lareira das províncias do Ultramar, e para Luciano Cordeiro, seu duca e maestro.

É que na mente e no ânimo deste varão insigne pela robustez e vibratilidade do patriotismo vieram confluir torrencialmente as diversas correntes que em brevíssimo compêndio acabo de indicar.

Anos antes, as pretensões descobridoras e as injustiças de Livingstone haviam levantado protestos, dos quais, o mais clamoroso, porventura, ecoou em 1867 com o Exame das viagens do Dr. Livingstone, de D. José de Lacerda. Fora esta a fase, por assim dizer negativa e sentimental; agora, volvidos poucos anos, perante a maré alta das ambições, das ameaças espoliadoras, das violações de direitos, tornava-se necessária a ação positiva, multiforme, adaptada às ocorrências e circunstâncias. Impunha-se que as províncias ultramarinas fossem conhecidas pormenorizadamente no seu condicionalismo geográfico e que uma coletividade, brotando da livre associação de vontades, como era o estilo do século, sugerisse ou esclarecesse iniciativas coloniais e divulgasse conhecimentos e resultados? Pois bem: Luciano Cordeiro faz-se geógrafo, e mais do que geografo é o deus ex machina da Sociedade de Geografia, fundada em 1875, anteriormente às suas congéneres de Antuérpia, de Bruxelas, de Copenhague e de Madrid.

Urgia que os nossos direitos de descobridores e de colonizadores fossem reconhecidos e firmados e que as populações e territórios do Ultramar beneficiassem dos progressos materiais e morais da civilização? Pois bem, para os servir e vindicar como cidadão livre, Luciano Cordeiro torna-se colonialista.

Finalmente, no plano histórico, perante a vaga de falsidades e de deturpações, ignaras quando não vaidosas cumpria reviver o grande exemplo do Visconde de Santarém, dissipando erros, sugerindo hipóteses, robustecendo verdades? Pois bem, Luciano Cordeiro torna-se historiador dos descobrimentos, ou mais precisamente de alguns descobridores, na sua atuação concreta e real.

Nenhuma destas manifestações da atividade prática ou intelectual ocupa habitual ou profissionalmente o meu espírito, e portanto o decoro inibe-me de as julgar como cumpre: atrevo-me, no entanto, a apreciar o contorno destes aspetos da sua personalidade sob o ponto de vista da cultura pátria, objeto dominante do meu estudo.

A esta luz, Luciano Cordeiro, considerado como geógrafo, afigura-se-me essencialmente um combatente. Com Pedro Nunes, que indiferentemente se intitulava geógrafo ou cosmógrafo, a geografia fora essencialmente cosmografia e cartografia, para mais tarde se compendiar, didaticamente, em corografia. Luciano Cordeiro não reanimou nenhuma destas atitudes nossas domésticas, nem tão pouco se prendeu a qualquer das tendências forasteiras dominantes no seu tempo, isto é, à de Humboldt, orientada para o estudo da distribuição dos fenómenos naturais à superfície da terra, ou seja o aspeto físico, nem à de Carlos Ritter, mais humana, atribuindo valor capital à investigação das relações do homem com o solo. Fora o patriotismo que lhe ditara o estudo dos problemas geográficos na sua conexão com a história dos descobrimentos e da colonização e, sobretudo, com a soberania e com os interesses nacionais; por isso a sua atitude ou é histórica, como na notabilíssima L'Hidrographie africaine au XVIe siècle d'après les premières explorations portugaises, quando esclarece sabiamente as ideias dominantes entre nós, no grande século, acerca da origem lacustre e topográfica do Zaire, do Zambeze e do Nilo, do curso do Zaire e da provável bacia dó Nilo, baseado em grande parte nesse estupendo livro que é a Relação de Duarte Lopes; ou é militante, como o exaustivo, fogoso e exato memorando da “Questão do Zaire”, quando as circunstâncias impunham a refutação de erros que eram o disfarce de ambições espoliadoras; ou é descritivo, como na memória acerca da Exploração e na Notícia do Cunene, quando pretende fundamentar a ideia de que “civilizar a África” equivalia então “a conhecer-lhe a hidrografia”, e finalmente incitante e programática, como no admirável relatório da primeira sessão anual da Sociedade de Geografia, no qual, sob o título Portugal e o movimento geográfico moderno, rasga a esperança de claros e promissores horizontes à ciência geográfica nacional, de par que refuta os tópicos que aleivosamente se divulgavam acerca da Pretensa desumanidade da nossa colonização.

Na maior parte destes escritos não é fácil discriminar as fronteiras entre o geógrafo e o colonialista, dado que foram pensados como justificação dos direitos da nossa soberania e neles lateja, sob o sentido da exatidão dos factos e do encadeamento lógico dos raciocínios, a pulsação do patriotismo. Escreveu um dia Rebelo da Silva que “a civilização impõe deveres, e para a atrair só há um caminho, que é cumpri-los”. Este belo pensamento do romântico escritor, que serviu a política com a mesma generosidade de ideias com que exaltou a história pátria e compôs alguns lances romanescos, sintetiza uma das facetas de Luciano Cordeiro como colonialista. Com efeito, se por um lado o exaltava a ideia de ser patente a todos os idiomas, com o brado retumbante dos grandes feitos, que os portugueses do século XIX não desmereciam dos seus antepassados do século XVI, pugnando, por isso, pela realização da travessia do continente africano, por outro defendeu a organização de expedições científicas a África, incitou ao estudo da etiologia dos povos do Ultramar e o das condições de vida, técnicas e administrativas, em ordem à atividade de comerciantes, de colonos e de funcionários, relatou o notável projeto de um curso colonial, de fins científicos e de preparação administrativa, e sugeriu a reorganização da instrução pública em África. A sua opinião, voto ou patrocínio, secundou sempre os empreendimentos públicos ou particulares, científicos ou económicos, que tendessem ao progresso e fomento colonial, muito especialmente das províncias africanas, pelos perigos que então corriam. Dele se disse com justiça e autoridade que fora a “alma de todo o moderno movimento africanista em Portugal”, mas com ser grandioso e admirável este aspeto da sua ação colonialista outro há que só os vindouros virão a conhecer plenamente nas suas fontes documentais. É o do patriota ardente, que se uma vez, em 1876, a quando da exclusão de Portugal da Conferência Internacional de Bruxelas, donde saiu, como larva do Estado Livre do Congo, a Associação Internacional para a Exploração e Civilização da África Central, pôde fazer ouvir a sua voz de protesto, com êxito e reconhecimento público, noutra, em 1884, como técnico da delegação portuguesa à Conferência de Berlim, teve, porventura, de a sufocar. Deste lance da sua e da nossa vida nacional, que ele próprio designou de “amargurada tarefa”, repito, só os vindouros poderão julgar com o conhecimento documental das chancelarias, mas baste-nos a convicção robusta de que ninguém o excedeu na firmeza das opiniões, na suspicácia clarividente e só acerta quem muito desconfia! — No sentimento implacável do direito e da justiça, e que a história imparcial corroborará o dito espirituoso do Barão de Courcel, chefe da delegação francesa à Conferência, quando chamou a Luciano Cordeiro um “Comité du salut public”.


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