1. Homenagem a Luciano Cordeiro

Como historiador, a obra de Luciano Cordeiro é, em grande parte, a projeção no plano interpretativo do passado deste espírito de patriota intransigente. Domina-a o tema dos descobrimentos e da pessoa dos descobridores, considerados sempre uns e outros como expressão nossa própria, com manifesto repúdio da conceção da unidade do génio peninsular, que por então começava a irradiar da pena aliciante de Menéndez y Pelayo e D. Luís Vidart expressamente lhe exprobou. No conjunto, ela vale como repositório de factos, e no ponto de vista crítico, pelo manancial de hipóteses e de sugestões que desperta: pôs problemas, rasgou caminhos, abriu perspetivas. Por isso não surpreende que tenha sido criticada e, sobretudo, continuada. É o que logo ocorre com a sua primeira grande obra, a famosa carta de 1876 ao Congresso Internacional de Americanistas, intitulada De la part prise par les portugais dans la découverte de l' Amérique, constantemente citada na bibliografia colombina, ora para a louvarem, como Vignaud, na monumental Histoire critique de la grande entreprise de Christophe Colomb, que nela viu a “excellente critique” de “um dos maiores eruditos portugueses do nosso tempo”, ora para a refugarem para o domínio da literatura fabulosa, como o sábio Richard Hennig, no Columbus und seine Tat. Eine kritische Studie über die Vorgeschichte der Fahrt von 1942 (Bremen, 1940) e, mais recentemente, em 1942, na admirável revisão da problemática pré-colombina, “Alt-Amerika”, na Historische Zeitschrift. Seja, porém, como for, Luciano Cordeiro estabeleceu uma coordenação e interpretação dos factos, que não pode ignorar-se. Este é, com efeito, o destino de todos os livros construídos com consistência e coerência: pode corrigir-se-lhes a interpretação, esta pode mesmo substituir-se total ou parcialmente, que sempre conservarão o viço que os factos esmeradamente apurados lhes emprestam. Por isso há quem tenha dissentido, e notavelmente por vezes, de certas opiniões de Luciano Cordeiro, designadamente acerca da interpretação das viagens quinhentistas de Duarte Lopes, do padrão de Diogo Cão e das misteriosas cartas de Soror Mariana, mas ninguém logrou dispensar a investigação histórico-crítica da L'Hydrographie africaine au XVe siècle, d'après les premières explorations portugaises, e a soma de factos que as memórias sobre Diogo Cão e a monografia sobre a freira de Beja acumularam com profusa cópia e robusta solidez. Nalguns escritos, como nas Memórias do Ultramar, domina a feição documental, noutros, como na série intitulada Vésperas do Centenário da Índia, a narração ou o apuramento preciso de factos, noutros,ainda, como nas Descobertas e Descobridores, a construção da biografia, mas com serem diversos na estrutura ou no fim todos possuem a mesma índole e revelam o mesmo erudito, escrupulosamente infatigável, que nos derradeiros anos sempre soube fugir à tarântula literária, com a introdução insidiosa do romanesco na narrativa exata. Um escrito seu, a nota breve De como navegavam os portugueses no começo do século XVI, está no portal da nossa pujante literatura contemporânea de re nautica e nas duas narrativas dos Portugueses fora de Portugal, sugeriu, a um tempo, temas que pelo seu alcance merecem ser retomados com amplitude e quanto se impõe a exploração de arquivos estrangeiros para esclarecimento da nossa história.

Intérprete de grandes feitos, escultor moral de personalidades, evocador de lances e de incidentes, divulgador e sempre investigador consciencioso, tal foi Luciano Cordeiro como historiador, num tempo em que Gama Barros edificava o monumento perene da História da Administração Pública em Portugal, Braancamp Freire levava a exatidão aos domínios da lenda, Sousa Viterbo carreava sem cansaço materiais seguros, Teófilo escrevia obstinadamente a História da Literatura Portuguesa, Oliveira Martins, o pedante de talento, lograva dissimular a informação apressada e a mentalidade catastrófica e panfletária com a magia do estilo, Esteves Pereira cultivava o saber raro, Ficalho, Bocage, Serrano, Gomes Teixeira colocavam marcos novos na nossa história científica, Eça ria da sociedade constitucional, Antero meditava uma filosofia com mais sentimento que pensamento e Leite de Vasconcelos percorria todos os sítios e todas as páginas onde houvesse um vestígio do viver português.

No breve debuxo que acabo de traçar acentuei apenas o vinco que me pareceu dominante na obra impressa de Luciano Cordeiro, deixando na sombra o perfil afetivo do chefe de família, o vulto grandioso do organizador do Centenário de Camões e, sobretudo, do Centenário da índia, a figura intemerata e sensível do cidadão, o aprumo do representante do país, a imagem nervosa do escritor. Perdoai-me. Nem a exiguidade do tempo, nem a carência dos recursos me consentiram que evocasse, com o escrúpulo que exigem, todos os rasgos desta personalidade exuberante que acima de tudo amou e serviu exemplarmente Portugal.


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