2. D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos

Em nome do Exmo. Reitor da Universidade de Coimbra e da Faculdade de Letras da mesma universidade, venho cumprir a mais dolorosa missão da minha vida de professor, porque a obrigação que me impuseram circunstâncias de momento coage-me a exteriorizar sentimentos que eu preferia concentrar, vivendo-os silenciosa e intimamente. Não há um intelectual que neste momento se não curve humildemente perante o cadáver da que foi a mais sábia das mulheres; mas quando a este sentimento intelectual se juntam as recordações afetivas do melhor e do mais bondoso dos corações, não há palavras que possam traduzir o nosso estado de alma atribulado. E o meu caso. Fui seu discípulo, e nas suas lições, nos seus livros e nos seus conselhos formei em grande parte o que sou, e foi com o seu voto, que eu tive a maior honra da minha vida: ser seu colega; mas a recordação destes factos e da mais generosa e indulgente das amizades, alterou de tal forma o meu espírito que deveria aguardar a calma para poder dizer o que representa de irreparável este falecimento. A Universidade de Coimbra perde com a professora Carolina Michaêlis de Vasconcellos um dos seus mais insignes professores de todos os tempos, e o seu nome, como os de Pedro Nunes, Ribeiro dos Santos e Avelar Brotero, é já hoje inseparável da sua história, quer dizer, da nação.

Da nação, sim, porque a obra de D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos tem de ser considerada como o mais rico e fecundo património humanista da nossa época. Pela sua pena, Portugal e o génio literário português adquiriram direitos de cidadania nos meios cultos europeus, especialmente alemães, onde até então havia um vago conhecimento ou uma simpatia romântica. Depois do Cancioneiro da Ajuda, da História da Literatura Portuguesa, das Randglossen, foi possível haver lusólogos, e a sua falange foi aumentando na proporção em que a obra da Senhora D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos se ia difundindo. Mas não é apenas como veículo da simpatia por Portugal que devemos admirar esta obra. O seu espírito, o seu método e os seus resultados marcam-lhe um lugar inconfundível na história da erudição europeia e jamais ninguém a lerá sem sentir a sedução das ações honestas.

Apurar factos, seriá-los e sistematizá-los não era para o espírito da Senhora D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos um trabalho exterior, de passatempo frio e paciente. Na história via sempre o geral e era o elemento humano e as conceções da vida que ela procurava nos despojos aparentemente inertes do passado. Uma universal curiosidade levou-a a estudar e a surpreender o génio português em todas as suas manifestações — desde as palavras às ideias, desde o homem às instituições, desde a etnografia aos mais elevados e subtis movimentos espirituais. Humanizando a cultura com o ardor dum renascente do século XVI, reformou ao mesmo tempo a erudição e os seus processos.

Não há nas suas páginas nem a ênfase fradesca do século XVIII, nem o bruxulear fumoso do saber académico do século passado.

Tudo o que escreveu é harmonioso e equilibrado e se alguma crítica se lhe pode opôr é ser severamente científico.

Jamais afirmou um facto que o não documentasse, e as suas sínteses ou generalizações não surgem misticamente, nem precipitadamente, mas aparecem-nos como a cúpula duma arquitetura delineada e alicerçada.

Desprezou as bagatelas e nunca se entreteve em curiosidades. O seu espírito só viveu para o que era digno intelectualmente: desde o sentir medieval à virtù renascente.

Estas atitudes intelectuais, de probidade nos processos e de dignidade nos assuntos, eram o espelho da sua alma, bondosa e grave. O dever para consigo própria, e o amor da humanidade eram porventura os polos da sua conceção da vida, toda impregnada de razão e de virtude.

Com os seus discípulos era duma indulgência comovente, própria só duma inteligência que por tudo compreender, tudo perdoa.

Como colega era o modelo da lealdade. Nas horas de alegria como de provação, sempre D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos acompanhou a Faculdade, sacrificando tudo, encantos de família, tempo e comodidades de residência, à Alma mater conimbricensis. 

Com a morte de D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra perde o seu mais egrégio professor, bem devendo dizer-se que fica vago para sempre o lugar que ocupava. Pela minha voz apagada a Faculdade presta apenas neste momento a derradeira homenagem à pessoa de D. Carolina Michaëlis, reservando-se o dever de condigna e elevadamente testemunhar ao seu espírito e à sua memória o culto de que são dignos.

Meus Senhores:

A vida da Senhora D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos foi uma obra-prima de ternura, de razão e de trabalho. Não atacou nunca ninguém, e tudo sacrificou aos únicos dogmas em que acreditava: a verdade, o dever e a humanidade. Foi corajosa quando era necessário sê-lo e as suas opiniões jamais sofreram as oscilações do mundo exterior.       

Os grandes admiravam-na, e os pequenos, os humildes de espírito ou de condição, devotavam-se-lhe comovidamente.               

Curvemo-nos, porque vai baixar à sepultura o cadáver de alguém que pensou e nobremente procedeu, cuja obra perdurará no convívio dos sábios e cujo espírito viverá na saudade dos homens bons.               


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