4. In memoriam do Dr. Luciano Pereira da Silva

Comecei a estimar o Dr. Luciano Pereira da Silva depois que, já seu colega na Escola Normal Superior, vim — sic quoque docebo — para a Imprensa da Universidade.

A vizinhança aproximava-nos; mas mais do que esta circunstância episódica, por uma singular ironia em que era a negação do scholar livresco, foram os livros os mensageiros, senão os criadores do ambiente em que a divina flor da amizade nasceu. A estima cordial com que me acolhia ou procurava foi pouco a pouco vencendo a diferença de idade, não havendo nos últimos três anos un après-diner passado em Coimbra em que não confidenciássemos preocupações intelectuais ou dissolvêssemos pelo passeio ou pelo colóquio num círculo de amigos e colegas as impertinências ou aborrecimentos do dia.

Com que saudosa emoção recordarei sempre esta convivência, interrompida pela mais horrorosa e estúpida das mortes!

O seu convívio era encantador. Muito viajado, com uma larga cultura literária, sobretudo de poetas ingleses, um penetrante espírito de observação, uma Weltanschaung de fundo spenceriano — Spencer fora o filósofo dum sector da mocidade universitária por volta de 1890 e agradava-lhe recordar o entusiasmo juvenil com que lera os Primeiros Princípios —, a sua conversa tinha sempre a sedução da variedade e não raro a da elegância do dizer.

O bom humor, isto é, a tendência fácil para salientar os contrastes da realidade e da aparência, era a disposição permanente do seu espírito, com o comedimento moral do delicado que odeia a grosseria e abomina a malevolência. Nas horas de passatempo a sua alegria, tão saudável e comunicativa, era irónica por vezes e espirituosa sempre; mas nunca a ironia degenerou no sarcasmo, na alusão equívoca ou na reticência suspeitosa. Um vivo sentimento da dignidade humana inundava os seus juízos; por isso não teve querelas pessoais e a graça da sua conversa longe de magoar aproximava e prendia.

Esta alegria era a tradução da sua saúde física e moral. No pequeno círculo coimbrão ninguém como ele vivia no sentimento de que a vida é digna de ser vivida, e tão ampla e profundamente que se alguma vez concebeu a ascese e as mortificações foi para enobrecer com elas a longínqua humanidade dum planeta, tão longínquo que os seus movimentos não viessem perturbar a máquina maravilhosa do nosso mundo.

Nestes anos, o Dr. Luciano sacrificava ao estudo o melhor da sua vida, organizando amorosamente a sua biblioteca, aliviando-se de compromissos, e cumprindo os deveres de universitário por forma que as suas investigações não sofressem atropelos ou demoras. Trabalhava quotidianamente nas horas mais calmas, com a experiente sabedoria de quem procura afugentar os estragos da fadiga. Tinha sem dúvida a consciência clara de que a sua pena se dirigia já a um público desconhecido, distante e disperso; mas a fama do escritor e do sábio e os frequentes pedidos de colaboração não alteravam o ritmo sereno deste denodado senhor das suas horas. Ars longa, inabalável verdade; mas porque nos obstinamos em pensar na fatal certeza de que a vida é breve?

Os sessenta anos convidavam-no brandamente a fazer o exame respetivo da sua obra. Surgia-lhe então o desejo de coligir os escritos dispersos, dando-lhes a unidade das obras completas; porém a frescura da sua inteligência e as raízes vigorosas que o prendiam à vida protestavam contra esta aposentação literária e de novo volvia os olhos para outros problemas e estudos. Nas férias grandes de 1923 escrevia-me de Caminha expando o plano de reedição da Astronomia dos Lusíadas. Orgulhava-se da severidade e exaustão científica do seu primeiro grande livro, tão perfeitas que apenas refundiria a matéria, que mais tarde desenvolveu no artigo célebre do fascículo camoniano da Lusitânia (“A conceção cosmológica n'Os Lusíadas”, 1925) e acrescentaria um capítulo (undécimo) fundado no estudo “A estrela Vénus n'Os Lusíadas” publicado na revista portuense A Águia (vol. XV).

Ao regressar a Coimbra estes propósitos esqueciam, jamais podendo criar a disposição intelectual do autor que se contempla ou atenua o fervor do trabalho inédito e original.

A sua bibliografia de 1923 a 1926 revela claramente esta atividade criadora; e justamente no dia fatal da abominável tragédia preparava para a Miscelânea em memória da Professora Senhora D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos um estudo sobre O Regimento da Estrela do Norte, largamente documentado com passagens esquecidas da nossa literatura medieval, especialmente quatrocentista, e dispunha-se para prefaciar e publicar em O Instituto o manuscrito inédito da Biblioteca do Porto: Tratado do uso da sphera.

Em Coimbra viveu nesta encosta de tão lírica beleza e donde se tem divisado, por vezes, o mais vasto panorama intelectual dia nação. A sua história confunde-se em larga parte com a história da alma portuguesa. O Dr. Luciano sentia a majestade deste local, e à universidade como seu símbolo prestava um íntimo culto fervoroso.

Solicitado para uma Escola de Lisboa, não emigrou. Coimbra prendia-o; e tão fortemente que nem a inteligência e sedução irresistível do Dr. Bernardo Machado o convenceram quando, se não erro, sendo presidente do Ministério, o convidara para inaugurar e reger a Cadeira Camões da Universidade de Londres.

Amando a universidade, o seu amor não se deixou contaminar pela satisfação regalada e muito menos pelo provincianismo, a mais confrangedora das doenças do espírito. Pendia até para a crítica desta litúrgica arqueologia universitária, cuja reconstituição nos daria um interessantíssimo museu e tão digna é de respeito pela longa teoria de homens que viveram neste ambiente e cuja vida espiritual se achou enquadrada neste ritual e nestas fórmulas.

A lúcida e irónica penetração com que distinguia a persistência necessária da sobrevivência anacrónica!

O Dr. Luciano serviu a alma mater como professor e primeiro diretor da Escola Normal Superior e não lhe regateou, em certos momentos, a lucidez do seu conselho e o prestígio do seu nome. Tudo isto desapareceu com a tragédia de Caminha; mas uma coisa persistirá indestrutível: o legado da sua obra escrita. A universidade com orgulho nela verá refletida uma feição atual da sua história e quando um dia entoar com espírito gratulatório o seu Carmen Sxculare, entre os seus deuses protetores, ao lado de Pedro Nunes, evocará a memória de Luciano Pereira da Silva.

Pela nobreza do assunto e severidade crítica dos resultados esta obra é perdurável, tanto mais que não tem exageros, nem labirintos. Penetra-a uma estrutural necessidade de ordem e clareza, que quase seria friamente matemática se a não percorresse o entusiasmo duma seiva patriótica.

Numa página notável dos Diálogos, Heitor Pinto simbolizou numa breve disputa entre o matemático e o legista, isto é, a especulação e a ação, a essência e o valor da expansão ultramarina de Portugal.

“Dizei-me se não fossem as leis, porque os nossos se regem no mar e na terra, como poderiam eles sustentar a índia, nem ainda achá-la e conquistá-la?”

“Mas se não fosse a matemática”, disse o matemático, “como poderiam eles lá levar essas leis?... Como se puderam atravessar as duvidosas ondas das imensas águas e fazer-se estrada real e diretíssima por elas sem conhecimento do norte, e das estrelas e dos círculos celestes?

“A agulha e carta de marear, que cousa é senão mera matemática? Essas regiões tão separadas e tão estranhas como fora possível descobrirem-se e conquistarem-se, se os nossos não foram instrutos nos conhecimentos dos movimentos dos céus, nos graus da altura, nos círculos e cursos dos planetas, na divisão dos climas, no mapa, no astrolábio, no quadrante, na propriedade e variedade dos ventos, nos eclipses, na arte de navegação, na cosmografia e sítio do mundo, na quantidade da terra, na natureza dos elementos, e finalmente no conhecimento da esfera, o que tudo consiste na matemática?”


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