5.° - O Tratado Da Interpretação

I. Há duas espécies de proposições que muitas vezes se confundem apesar de essencialmente diferentes: a proposição gramatical e a proposição lógica.             

A proposição gramatical exprime todas as modificações do espírito, admitindo o que se chama em termos gramaticais as figuras e os modos — isto é, o imperativo (da vontade), o optativo (do desejo), e o exclamativo (da sensibilidade em geral), ao passo que a proposição lógica, necessária, é exclusivamente consagrada às operações intelectuais, importando sempre uma afirmação ou uma negação e admitindo unicamente um modo, que os gramáticos chamam indicativo.    

É o estudo da proposição lógica que constitui o objeto do tratado Da Interpretação. Aristóteles definia a palavra como o símbolo do pensamento; mas havendo, porém, duas espécies de operações no pensamento, devem distinguir-se duas espécies de sinais na palavra. As ideias ou simples apreensões, que não são nem verdadeiras nem falsas, correspondem termos isolados, enquanto que a verdade e o erro são sempre expressos por uma afirmação ou negação, isto é, por uma proposição.       

Para bem compreender as regras e as formas das proposições é necessário conhecer os seus elementos que, no sistema de Aristóteles, são dois: o nome e o verbo.

O nome é uma palavra de sentido convencional, cujos elementos não têm nenhuma significação por si próprios, salvo quando o nome é composto. O nome quando precedido duma negação é indefinido, e as suas diversas terminações chamam-se casos.

O verbo exprime simultaneamente os atributos e os tempos e quando uma negativa o precede é, como o nome, indefinido.

Os nomes e os verbos são os únicos elementos da palavra que têm uma significação própria, formando as suas combinações o que vulgarmente se chama o discurso. A proposição, porém, forma de discurso, só existe verdadeiramente quando os nomes e os verbos contêm uma afirmação ou negação. A qualidade fundamental de qualquer proposição é a unidade, que deriva da afirmação, negação ou conjunção: nos dois primeiros casos a proposição é simples, no último, composta.

Em geral, a proposição exprime que uma coisa existe ou não existe num tempo dado; mas como se pode afirmar o que não existe e negar o que existe, a toda a negação se pode opor uma afirmação e vice-versa.

É esta atribuição recíproca que constitui a essência da contradição, (n/a) mas que na economia do sistema de Aristóteles pode revestir formas diversas.

Com efeito, as proposições, além de afirmativas e negativas, podem ainda ser universais e particulares, determinadas e indeterminadas, simples e compostas, absolutas e contingentes.

Proposição universal é a que tem por sujeito um termo universal, que conserva toda a sua extensão e proposição particular a que tem por sujeito um termo particular

A contradição só pode existir entre uma proposição universal e uma particular, ou entre duas proposições particulares que têm o mesmo sujeito, mas não entre duas proposições gerais. Neste último caso dizem--se as proposições contrárias.

Entre as proposições contrárias e contraditórias há uma diferença fundamental: é que as proposições contrárias podem ser simultaneamente verdadeiras ou falsas, enquanto que de duas proposições contraditórias só uma pode ser verdadeira (princípio de contradição).

Qualquer proposição geral ou particular é composta necessariamente dum nome e dum verbo, e como estes podem ser indeterminados, segue-se que a proposição também o pode ser. Mas, além destas formas, as proposições podem ainda ser afirmativas e negativas; donde resulta que o mesmo sujeito pode originar quatro proposições, opostas duas a duas, segundo a sua quantidade, como contrárias ou como contraditórias, isto é, duas cujo sujeito e atributo são simples e duas em que o sujeito e atributo são indeterminados ou precedidos de negação.

Por consequência, quando se desloca a negação, alteram-se as relações que existem entre as diferentes proposições, o que é necessário saber para evitar sofismas.

Nos últimos capítulos, Aristóteles trata das diversas espécies de proposições: universais e particulares, indefinidas, singulares, etc., das condições da oposição e contradição, que não expomos por ser uma matéria que se encontra em todos os manuais de lógica.

No capítulo 9.° procura, por um longo raciocínio metafísico, demonstrar que as proposições relativas aos contingentes futuros não são falsas nem verdadeiras duma forma determinada, porque se o fossem, seguir-se-ia que tudo advém necessariamente. Aristóteles insiste neste tratado particularmente sobre as condições da contradição, — o que se compreende visto que para ele o critério da verdade, o fundamento da certeza e da ciência, reside no princípio da contradição ou de identidade.

II. Ramo considerava o tratado Da Interpretação enredado nas maravilhosas ilusões da fatuidade, sem espírito dialético, salvo nas contradições, que, apesar de tudo, Aristóteles adulterou, formulando-lhe espécies falsas. Este tratado, considerado sob o ponto de vista dialético, revela bem a falta de probidade de Aristóteles porquanto os seus termos e matéria foram usurpados aos gramáticos.

III. Gouveia, pelo contrário, sustentava que o Perihemeneias em nada era impróprio da arte dialética. Se Aristóteles não teve a intenção de ensinar a falar e a escrever o grego com correção, mas unicamente de nos esclarecer sobre as proposições e a sua estrutura interna (ratio inter ipsas), que há de gramatical neste tratado ou de impróprio da arte cujo objeto são as regras de discernir o falso do verdadeiro? Os gramáticos são bem mais modestos, pretendendo tão-somente «ensinar a maneira de escrever e falar sem erros, segundo a autoridade daqueles que se julga terem feito melhor ambas as coisas». Se alguém lhes perguntar se a proposição «toda a ação de dolo é famosa» é contrária destoutra «nenhuma ação de dolo é famosa:»; a verdade das proposições «sobre coisa futura e não necessária» e as do tipo «chamar-te-ei amanhã à presença do pretor segundo a Lex Iulia de repetundarum»; a estrutura interna das proposições: «o homem é justo», «o homem não é justo», «o homem é injusto», que respetivamente se pode chamar simples, infinitas e privantes; se «são verdadeiras ditas conjuntamente de um objeto duas coisas que são verdadeiras ditas em separado»; quando é que «na enunciação dos modos se implica a afirmação»; se são contrárias as afirmações «Cícero foi homem de grandes dotes» e «Cícero foi homem de dotes mesquinhos», «Cícero não foi homem de grandes dotes» e «Cícero não foi homem de dotes mesquinhos», acaso não limitarão a sua resposta ao simples valor gramatical destas frases, à cor-recção dos termos latinos empregados? «Quando, pois, neste livro, Aristóteles nada mais ensina, que motivos há, pergunto, excelentes gramáticos, para Ramo vo-lo reivindicar? Compreendo que digais: este homem, visto que procede sem nossa autorização, visto que não o constituímos defensor dos nossos direitos, visto que nada lhe confiamos, não só é indigno de se lhe prestar atenção, como é merecedor de gravíssimo castigo como o mais malvado sicofanta.

Somos inferiores, em mérito e dignidade, aos dialéticos e, além de não reclamarmos no nosso tribunal o que é propriedade deles, confessa-mos ingenuamente ter aceitado e usado, sem as fazermos nossas, muitas definições, como as de nome, verbo e oração».

Para Ramo, porém, não é apenas o carácter gramatical, a ausência de espírito dialético, que é censurável no Perihermeneias.

Quando Aristóteles estuda as proposições pelo que respeita à sua qualidade (afirmativas e negativas), quantidade (universais e particulares) e oposição (contrárias e contraditórias) para determinar as condições e formas da contradição, atribui espécies falsas à contradição». «Assim é que, tendo-a definido «a afirmação e negação duma mesma coisa», um sofista astuto e ardiloso inventou uma singular contradição:

Um homem passeia.

Um homem não passeia.

Gouveia contesta que semelhante oposição envolva uma contradição, porque se o fosse, com direito se diria de Aristóteles que fazia lenha para se queimar (suo sibi illum gladio iugulat).

«Para o filósofo há contradição quando se afirma e nega o mesmo duma mesma coisa. Ora é uma só e mesma coisa o que significa uma só e mesma natureza. Assim, haverá contradição se se disser:

O homem é justo

O homem não é justo,

porque se afirma e nega a mesma natureza duma e mesma coisa». A contradição pode, porém, realizar-se de duas formas: afirmando ou negando simplesmente sobre o todo, como quando se diz:

Todo o homem é justo Nenhum homem é justo

ou «fazendo ambas as coisas para a parte», como no caso seguinte:

Nem todo o homem é justo Um homem é justo.

Nesta contradição é fora de dúvida que se afirma e nega o mesmo do mesmo, isto é, a mesma natureza e a mesma coisa da mesma coisa; mas como isto não tem lugar para a totalidade mas apenas para a parte, com razão se diz ambas as coisas. Nem mesmo é necessário que sobre o mesmo objeto individual se façam afirmações e negações de modo que digamos afirmar e negar da mesma coisa. A mesma natureza ainda se pode chamar universal. Por isso quando eu digo:

Um homem é justo

Um homem não é justo

afirmo e nego da mesma coisa universal e todavia faço qualquer das coisas do todo ou da parte».

Sobre a doutrina de Aristóteles do nome e verbo finito, que Ramo considerava «uma espécie de fantasia incoerente», Gouveia era de parecer que Aristóteles a exaurira, nada conhecendo de «mais verdadeiro, simples e claro. O nome (termo) homem possui propriedades e significações finitas e por isso se chama um nome finito. O não homem, como o seu significado é indefinido e incerto, incluindo-se nele o que existe e não existe, chama-se nome infinito». O que se diz do nome pode da mesma forma dizer-se do verbo; e assim é que «se lhe antepusermos uma negação teremos o verbo infinito, cuja significação se estenderá a tudo o que dele se possa negar», tal como o não homem, que nada significa de determinado, mas indica tudo o que não é homem, exista ou não na natureza (in rebus), porque com igual propriedade se chama não homem à pedra que existe e a Sócrates que já morreu». Ramo deveria versar este assunto da mesma forma como versou os futuros contingentes «onde procede como intérprete, já que não podia proceder como palhaço».

Mais acerba crítica dirigia Ramo à teoria aristotélica das proposições finitas e infinitas, considerando-a como o produto «duma imaginação quimérica sobre os nomes e os verbos», visto que se atendêssemos ao que Aristóteles diz, chegaríamos à conclusão de que há 144 espécies de proposições diversas.

Gouveia, longamente e numa abundante exemplificação, critica esta enumeração, afirmando que apenas há 32 espécies de proposições — 8 quando há um segundo atributo adjacente, variando o sujeito e atributo com a definição e indefinição», 8, «quando se junta um terceiro atributo adjacente e a esse a indefinição», 8 «quando a indefinição se opõe ao sujeito» e 8 «quando se junta a indefinição ao sujeito e atributo».

Não desenvolvemos toda a crítica de Gouveia por desnecessária. Ele próprio reputava esta matéria, a despeito do seu retoricismo, como inútil, afirmando, ao terminar a defesa do Perihermeneias, que as críticas de Ramo se deviam considerar irrisórias; todavia, aparentemente, encarou-as a sério, para acautelar os jovens, cujo entendimento Ramo ludibriava.


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Vamos corrigir esse problema