5. Carlos Eugénio Correia da Silva

Conheci Carlos Eugénio Correia da Silva em serviço oficial, de exames de Estado, e do breve encontro brotou espontâneo e fervoroso o meu respeito pela sua alta inteligência e dignidade moral.

Impressionara-me profundamente a probidade do seu saber, a lucidez da sua argumentação, a consciência dos seus juízos e a humanidade dos seus votos, e porque assim pensava, ao lavrar-se a ata final desse serviço, como presidente do júri louvei e agradeci a colaboração do mais jovem dos nossos colegas. Carlos Eugénio ficou comovido com as minhas palavras, de frio dever. Proferira-as quem não habitava no mundo de ideias em que ele vivia, e sem descortesia para ninguém, mas com nitidez, inclinara os seus anos de experiência docente e o seu ideal universitário perante aquele rapaz de saber probo e consciencioso até ao escrúpulo.

Franqueou-me então a sua alma; confessou-me as suas aspirações, e porque lhe repugnava atravessar-se no caminho de alguém, consultou-me com cândida timidez se podia transitar da Faculdade de Letras de Lisboa, onde era professor auxiliar, para a Faculdade de Coimbra.

Decorreram alguns dias, e após uma rápida vinda a Coimbra anunciei-lhe que o meu antigo mestre e saudoso amigo, Mendes dos Remédios, então diretor da Faculdade, se encarregara de falar aos colegas e oficialmente lhe transmitiria o aplauso unânime com que o acolhíamos na nossa Escola.

O convite de Coimbra fixava-o definitivamente ao magistério, e sobretudo apaziguava os escrúpulos de quem se sentia preso a deveres de camaradagem e a compromissos espontaneamente assumidos. Por isso ele ecoou na sua alma, e com alvoroço, a um tempo magoado e alacre, escrevia-me em 14 de Julho de 1930 esta carta, espelho de discípulos e de mestres:

“Chegou-me ontem pelo correio um cartão de V. a comunicar-me a notícia que oficialmente já me fora dada pelo Sr. Dr. Mendes dos Remédios.

“E nesta hora porventura decisiva da minha vida, consumado já o facto na Congregação final de Coimbra, ao escrever à pessoa a quem devo que se tenham lembrado de mim, parece-me justo que escreva alguma coisa de mais verdadeiro do que uma protocolar carta de agradecimentos.

“Para falar com franqueza a V., embora eu me sinta felicíssimo e por assim dizer com alma nova ao pensar na minha nomeação para Coimbra, no entanto avultam a esta hora ao meu espírito sacrifícios em que até há três dias eu nem sequer reparava. Tem-me vindo agora à memória, insensivelmente, uma frase de Emile Gebhart em L'Agonie de Cicéron, ao mostrar Cícero a fugir da chacina da Roma dos triunviras com a vaga esperança de achar um refúgio em Atenas, no sossego dos livros: `C'était bien l'éternel adieu qu'il donnait aux grands rêves de sa jeunesse et de son âge múr'. Sinto agora esta frase como nunca a senti. Sinto que estou a dizer adeus para sempre ao que foi o sonho de seis anos da minha vida, [...] sinto que digo adeus para sempre à terra e à casa onde nasci, a esta Lisboa de que eu tinha tantas saudades por entre os nevoeiros de Friburgo e que, apesar dos seus podres, da sua imoralidade escancarada, dos seus politiquetes de todos os matizes, dos seus snobs e ociosos, me encantou sempre pela luz e pela animação; sinto que digo adeus ao meu meio, a relações sociais que, apesar de isolado, eu apreciava, e que ficam em Lisboa as pessoas queridas, que me rodeavam de carinhos.

“Tudo isto pesa. São vinte e seis anos da minha vida (em que houve apenas o parêntese da minha estada na Suíça) a que hoje ponho um ponto final.

“O que mais aumenta a minha confusão (chamemos-lhe assim) é ver que os lentes de Lisboa, pelo menos aqueles que eram deveras meus amigos, embora reconhecendo todos a legitimidade do passo que dei e da atitude da Faculdade de Coimbra, não escondem a sua pena por me ver ir embora. (Entro em pormenores concretos porque sei, por conversas suas, que este assunto tem especial importância para V., dadas as boas relações entre as duas Faculdades.) O Dr. José Maria Rodrigues, quando lho comuniquei, mostrou-me a sua satisfação por ver a minha vida arrumada, e depois vieram-lhe as lágrimas aos olhos (nunca tal supus, pois na aula de Estudos Camonianos só me lembro de o ver comovido quando chegámos ao naufrágio do Sepúlveda). O Vieira de Almeida disse-me que se alegrava pela solução que aparecia na minha vida, mas não escondeu a sua tristeza por me ver sair da Faculdade. O Dr. Manuel Ramos, com quem se deu há anos o esfriamento que V. sabe, disse-me que, se fosse novo e solteiro como eu, há muito que tinha abalado para Coimbra, mas acrescentou que era com pena que me via partir, pois sempre tinha esperado ver-me professor em Lisboa.  

“Foram estes afinal os meus mestres. E tudo isto pesa.              

“[…………….]

“Aí espera-me uma cidade linda, que Junqueiro (ouvi contar a Teixeira de Pascoais) achava só comparável a Florença, uma terra onde nas minhas distrações escuso de estar a pensar nos táxis que me podem atropelar. Espera-me uma Faculdade que trabalha em conjunto, que sustenta uma revista, organiza cursos de férias e institutos estrangeiros, uma Escola magnificamente instalada, com aulas esplêndidas e uma bela biblioteca onde não se conversa. Esperam-me lentes que prezam o savoir vivre e que já hoje me estão a dar as mais cativantes provas de deferência e de estima.

“Tudo isto também pesa muito. E é com alegria afinal que eu vou para Coimbra, com aquela alegria que eu, filho e neto de oficiais de marinha que tinham amor à sua profissão e às responsabilidades contraídas, sempre tenho posto no cumprimento do meu dever. Vou para Coimbra — como diz esperar na sua carta o Sr. Dr. Mendes dos Remédios —, tentar prestigiar com a parcela do meu esforço a minha nova Faculdade, que aliás de mim não precisava.

“Desculpe V. esta longa maçada, mas hoje senti a necessidade de ser franco com V., em quem reconheço um verdadeiro amigo. Esta carta é confidencial, como V. evidentemente depreende; no entanto visto este assunto interessar especialmente V. e os seus colegas, pode fazer pleno uso da parte em que me refiro às boas relações que continuo a manter com os meus antigos mestres. Típica de que ninguém me leva a mal o passo que dei foi a opinião do Dr. Agostinho Fortes: 'Se V. não tem procedido como procedeu, então eu concluía que era totalmente destituído de espírito prático'.

“[……………………]”.

Subitamente, a aurora da vida propícia às suas devoções de clerc e de sábio transmudou-se em negro ocaso: os primeiros sintomas da implacável doença, que o vitimou, impuseram-lhe o internamento, em 2 de Agosto, no Sanatório Sousa Martins. Para nós, em Coimbra, ele foi então o colega desventurado e distante, sobre cujo leito se debruçavam as nossas mágoas, as nossas ansiedades e as nossas esperanças.

Confiávamos, e ternamente quisemos dar-lhe a sensação de que o não esquecíamos nem proveríamos a sua cátedra por outrem, a despeito da impossibilidade legal da nomeação. Carlos Eugénio compreendeu-nos.

O pensamento, nos breves momentos que os seus desvelados médicos lhe concediam e cada vez se iam tornando mais fugazes e raros, incidia verticalmente sobre preocupações científicas e docentes. Ao princípio pôde rever grande parte do Ensaio sobre os Latinismos d'Os Lusíadas, publicado já postumamente, e embora se lhe insinuasse com pérfida brandura a evocação dolorida de mentes ceifadas pelo bacilo assassino, confiava ainda no restabelecimento da precária saúde. Por caridade, mais do que lenitivo, o seu espírito sentia-se irmão daqueles sábios que caíram a meio da jornada, e sobre cuja memória se inclinava com resignação cristã. Como lhe houvesse anunciado a minha ida a Oxford, pediu-me, em 17 de Agosto, que verificasse “numa biblioteca universitária se Othon Riemann, o criador da sintaxe histórica latina (1853-1891), morreu tuberculoso.


?>
Vamos corrigir esse problema