5. Carlos Eugénio Correia da Silva

“Tudo me leva a crer que sim, pois morreu com 38 anos, e cinco anos antes de morrer já datava o seu livro de `Interlaken, no mês de Outubro', que nesses países já não é verão, e a 23 de Outubro, quando em Paris a vida universitária já está reaberta. Se assim fosse, como muito lhe devo, dedicar-lhe-ia a minha primeira tese: 'A memória de Othon Riemann, o mestre da sintaxe histórica latina, falecido aos 38 anos, vítima da tuberculose pulmonar'.”

Depois, teve ainda ânimo para elaborar mentalmente o plano da tese de doutoramento, “o meu ainda embrionario De Latina Língua in Lusitania et Gallaecia”, cujo título me anunciou em 7 de Janeiro de 1931 e para a qual havia coligido elementos nas inscrições do Museu Etnológico Dr. Leite de Vasconcelos.

Com que carinho e esperança me falara deste livro! Ambicionava-o exaustivo, e consolava-o a crença de que, pelo valor da documentação epigráfica inexplorada, a obra, escrita em latim, seria o digno testemunho da sua gratidão à nossa Faculdade. Para quem se educou e serve uma Escola, onde são profundos, embora nas coisas desta natureza nunca deva falar-se de profundeza ou excessos, o respeito pelas opiniões individuais, o dever pela obra comum, e o sentimento de uma missão a cumprir, na qual nos habituamos a ser continuadores e não pioneiros, talvez a nossa força e sem dúvida o nosso defeito, os planos do jovem colega e a seriedade da sua formação científica e moral eram cânticos de alegrias. Sentíamos que ele seria grande obreiro da nova edificação dos estudos greco-latinos em Coimbra, e o seu labor alicerçaria solidamente a ponte de ligação do saber clássico atual com os humanistas universitários que no século XVI nos precederam.

A realidade, porém, traía todas as esperanças e foi da sua pena, num dos derradeiros e heroicos esforços, que tive a cruel confirmação, quando em 9 de Abril o correio me trouxe este adeus, resignado mas inquieto:

“Sanatório da Guarda, 7 de Abril de 1931.

“A carta que eu hoje escrevo a V. Exa., carta que há muito meditei, que há muito ansiava escrever e que só agora posso levar a cabo, devido à febre constante que durante quase um mês não me largou, é decisiva na vida dum homem.

“O Dr. Ladislau Patrício, um amigo dedicadíssimo de todas as horas que aqui vim encontrar (é uma das coisas estranhas do meu destino quase não ter criado amizades sólidas e pelo contrário invejas implacáveis nos rapazes da minha idade e ao mesmo tempo ter inspirado amizades profundas a homens feitos que para nada precisavam de mim, o que se explica talvez por um precoce amadurecimento do espírito, logo após uma infância e uma adolescência precoces), o Dr. Ladislau Patrício, ia eu dizendo, ficou de informar V. Exa., com a competência clínica que lhe assiste, dos motivos que justificam esta minha carta.

“Infelizmente não se realizou a cura ideal que ambos os médicos deixaram prever a V. Exa. como possível na sua estada aqui e que a radiografia de 7 de Janeiro pareceu confirmar, ao anunciar uma cura por resolução na pior zona bacilosa de Julho, a região intraclavicular do pulmão direito. Após três semanas de statu quo em Janeiro, estando eu a pé, a temperatura começou a ageniar. Vim para a cama a ver se repouso favorecia a normalização da temperatura. Foi contraproducente. O isolamento pesou desta vez como um fardo sobre o meu espírito e numa 'cavalgada do espírito' (o termo foi do Dr. Patrício) deu-se um facto que foi uma surpresa para todos, a principiar por mim: doze anos da minha vida mental apareceram abruptamente dramatizados em verso. Poesia quase puramente objetiva, independente da vontade, pois alguns dos melhores sonetos -- 'Marco Aurélio', 'Diálogo de monges medievos', 'Beethoven' — apareceram inesperadamente enxertados em outros que rasguei.

“Esse esforço mental (que durou de 18 de Fevereiro a 10 de Março), enxertado num estado já um tanto mórbido em que a revisão de provas e o estudo me causavam já alterações sensíveis da temperatura, e a primavera, estação traiçoeira entre todas, caíram em cima de mim A 6 de Março, ao ver-me com 37,8° e expetoração de sangue às 5,20 horas da madrugada, o Dr. Paúl proibiu-me toda a atividade mental; o meu subconsciente respondeu-lhe com o soneto 'Trenos dum espírito agrilhoado ao corpo', um dos que lhe mando. No entanto obedeci conforme pude, e só infringi a proibição para rever, com permissão dele, as oito primeiras páginas dumas provas que o Nazareth me mandara; as oito últimas já não pude rever.

“A 14 de Março a análise à expetoração acusou de novo bacilos (escala 2, por homogeneização). A 12 de Março a temperatura principiara a subir e desde esse dia até hoje a temperatura ainda não entrou na normalidade, ainda não voltou à casa dos 36°, apesar do emprego diário do antitérmico. Fixou-se na casa dos 37°, oscilando entre 37,1 e 38°. Ontem foi o primeiro dia em que as oscilações foram normais, mas ainda assim a temperatura mínima foi de 37,3°. Agora estou a escrever-lhe com 37,5°.

“Ao mesmo tempo, os médicos sentem de novo, desde 17 de Março, ruídos discretos mas nítidos, desta vez na base do pulmão direito, foco que a radiografia de Julho deu como mal caracterizado e a de Janeiro deu como teimoso.

“Em suma: nova poussée da doença, caracterizada em relação à primitiva por uma menor quantidade de bacilos (4 de Agosto: escala 6 por exame direto; 14 de Março: escala 2 por homogeneização), mas caracterizada igualmente por uma persistência do estado subfebril até agora ainda não registada.

 “Corolário imediato: não posso reger cadeiras em Outubro nem no próximo ano letivo (à hora a que estou a escrever estas linhas já sei que o Dr. Ladislau Patrício lhe escreveu a dar essa informação) e tenho de prolongar a minha estada no Sanatório por período indefinido, que se espera no entanto não ir além de Outubro de 1932.

“Em vista disso acho ser meu dever de homem digno e sério dizer a V. Ex.a:

“A Faculdade de Letras de Coimbra, que me abriu os braços, a Faculdade de Coimbra, que nada me deve e que tem sido para comigo duma extrema gentileza, não pense mais em mim, não fique presa, com prejuízo seu, a um D. Sebastião que nunca mais sai da Guarda, organize o preenchimento dos seus quadros como muito bem entender.

“Meu Avô paterno, conde de Paço d'Arcos, o último oficial de nome dos tempos da marinha veleira, que não era um literato mas um homem culto e vivia na intimidade de Tomás Ribeiro, de Pinheiro Chagas, de Andrade Corvo e de Bulhão Pato, escreveu em rapaz novo uns Folhetins Marítimos que, pelo colorido náutico, chamaram a atenção de Castilho. Um desses, que li quando tinha onze anos e nunca mais tornei a ler, do qual nem uma frase me ocorre mas somente a ideia global, chamava-se “Homem ao mar” Aplico-o hoje à minha vida.

“Isto disse-o a sério ao professor catedrático da Universidade de Coimbra. Agora vou falar ao amigo.

“Não é segredo para nenhum dos que me conhecem que eu tive desde os vinte anos a legítima ambição de ser professor universitário. Essa ambição foi estimulada durante o curso pelos lentes catedráticos Drs. José Maria Rodrigues, José Joaquim Nunes, Leite de Vasconcelos, Manuel Ramos, Agostinho Fortes, Silva Teles e Matos Romão e, ainda mais do que ninguém, pelo hoje catedrático Vieira de Almeida. Essa ambição, hoje quase destituída de objeto e de finalidade, perdura ainda como um dos poucos coeficientes psíquicos que me prendem à vida. Ainda não esqueci que a 19 de Julho de 1929, às seis horas da tarde, na sala grande onde tinham ensinado Rebelo da Silva, Pinheiro Chagas, Viale, Epifânio, Adolfo Coelho, Jaime Moniz, Teófilo Braga e Consiglieri Pedroso, o Dr. José Joaquim Nunes, presidente do júri, me anunciou que na minha formatura eu ficara distinto com vinte valores e acrescentou ex cathedra: 'Agora venha para aqui. O seu lugar é cá dentro'.


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