5. Carlos Eugénio Correia da Silva

“6.ª hipótese). Morrer. Porque não prevê-la? 'Então o senhor não calculou o sítio onde havia de morrer?', dizia Foch a um examinando. Não tenho coeficientes psíquicos que me prendam à vida: o último era o desejo de estudar e o lugar de Coimbra. Sem mãe, sem irmãs, sem noiva, sem filhos, sem ninguém que precise de mim, sinto que a minha morte até daria alívio aos oficiais do meu ofício. Meu Pai teria um grande desgosto, mas eu faço este raciocínio: teve desgosto ainda maior com a morte da mulher, sentiu a vida quebrada, impressionou toda a gente, tem tido uma viuvez há oito anos sempre exemplar, ascética mesmo, e no entanto foi depois de viúvo que ele teve as grandes horas da sua vida pública, como ministro das Colónias, ao financiar Angola e ao salvar Macau do condomínio inglês, como governador colonial e como português, na questão do porto ida Beira, ao atirar trinta contos mensais às ortigas e ao levar a opinião atrás de si.

“O próprio Cristianismo não é um coeficiente psíquico que me prenda à vida. Não é evidentemente uma escola de suicídio, como o De contemnenda morte de Cícero, posto em prática pelos estoicos desde Catão o Uticense até Séneca. Mas é uma escola de desapego à vida, desde São Paulo Nupio dissolvi et esse cum Christo', 'Quis me liberabit a corpore mortis hujus?') até à Imitação de Cristo (Seatus quem nullius rei amor retinet in mundo').

“Tenho de acabar. Sinto-me muito cansado. Espero mandar-lhe amanhã os sonetos; hoje é impossível.

 “Desejo-lhe as melhores prosperidades na sua viagem e do coração lhe digo o que Édipo dizia a Creonte: 'Oxalá tenhas um destino melhor do que o meu!'.

“A sua passagem pela Guarda, à volta do estrangeiro, noutras circunstâncias, seria um prazer; assim seria uma consolação.

Ao ler tão desolada confidência senti na alma o dobre da derradeira despedida, e na névoa de amargura que me envolveu cintilava apenas o dever que havíamos cumprido e dera ao malogrado moço fugaz contentamento. Invadira-o a sensação do náufrago, e na perspetiva da morte nem alegria chegou a ser aquela “cavalgada do espírito”, que o conduziu, inopinadamente, à criação poética.

No entanto, durante vários dias, nos breves minutos que a febre consentia, pôde ainda escrever algumas poesias e ditar a conferência sobre A atitude moral e mental do tuberculoso perante a vida —páginas supremas de resignação, onde se não sente o travo do ressentimento contra o despedaçar de todas as esperanças e o moribundo, num cântico à alegria cristã, vibra na coragem humilde de rogar perdão ao mísero e desditoso auditório de tísicos por não haver sido mais alegre: “Ninguém pode pedir ao abeto severo dos Alpes, a alegria da nossa amendoeira em flor”.

O cântico de resignada alegria volveu-se em testamento espiritual e em óbolo de caridade para os tuberculosos pobres.

Outro não devia ser o seu destino.

Desejou-o Carlos Eugénio, cujo coração, a essa hora, talvez mais intensamente que nunca, sentiu o sublime da misericórdia e do amor do próximo, santa e terna mensagem de Jesus; e recolheu-o o altruísmo da benemérita Senhora D. Leonor de Almeida e Silva Marques Guedes, publicando-a, vendendo-a e prefaciando-a com a ternura de uma delicada sensibilidade de mulher.

Em 4 de Junho, devido ao agravamento da doença, saía do Sanatório, e um mês depois, em 4 de Julho de 1931, com 26 anos, expirava aquele que fora jubilosa esperança da ciência das letras e do renome da pátria, levando como cortejo amargurado o luto inconsolável da família, as orações dos crentes, que ele ajudara a afervorar, a dor dos amigos, a saudade dos companheiros de jornalismo, o respeito dos ilustrados e a veneração dos colegas no magistério.

Com exceção do último capítulo, este livro é constituído por artigos publicados no jornal As Novidades, na página literária, semanal, que o autor dirigiu. É portanto uma compilação de esparsos e, como a Jornada de um Crente, a ressurreição das horas aplicadas pelo moço estudante da Faculdade de Letras de Lisboa à margem dos absorventes deveres escolares.

Arrancá-las ao olvido das colunas do periódico era elementar dever de respeito pela inteligência e pela dignidade ao serviço do jornalismo, e dever não apenas para os amigos, senão para todos os que prezam a sinceridade das ideias, a probidade moral e a vida superior do espírito.

Que seria de uma nação onde o culto desinteressado de tão nobres valores se subvertesse e trocasse pelo rendimento utilitário das ações e das coisas materiais?

Instrumento dócil do bem e do mal, a riqueza em si mesma é indiferente e não merece vitupérios.

Sem a libertação das fadigas do sustento quotidiano, sem o consumo do tempo livre, que ela proporciona, em fins desinteressados, não teria sido possível o trânsito imenso do troglodita ao homem, da caverna à civilização.

Pauperismo e civilização são coisas antagónicas, e quando outras razões me não houvessem convencido, bastaria tal contraste para me advertir que a única política fecunda é a das classes médias, isto é, a do acesso do maior número à mediania económica. Por isso aplaudo tudo o que ampara a riqueza, desde a estabilidade da moeda, condição imprescindível do espírito de economia e da paz social, até à liberdade de ação, sem entraves intervencionistas do Estado — muito embora a razão e o coração me não dissimulem a justiça das reivindicações dos que, possuindo apenas a única mercadoria vendável do trabalho pessoal, aspiram, como os que cultivam a sua propriedade agrícola ou administram negócios ou empresas em que inverteram capitais, ao bem-estar e aos benefícios da civilização.

Este é o magno problema do nosso século, e resolvê-lo juridicamente, isto é, enquadrar a atividade do mesteiral nas garantias do direito, é hoje o objetivo supremo da política, o qual não creio encontrar-se no incêndio das revoltas, na compressão das ditaduras de classe, nos ideais de subversão total, nos regimes económicos de miséria coletiva e, portanto, na destruição da burguesia.

A burguesia não é apenas o estado social, de incerta duração histórica, edificado sobre o capitalismo, porque é acima de tudo uma maneira de ser e de viver, que tem resistido e resistirá à caducidade dos regimes económicos e políticos. É na pequena burguesia, especialmente agrária, que encontro os bastiões inabaláveis da nossa nacionalidade, e que é a pequena burguesia senão a luta pela riqueza tangível, ou, por outras palavras, a conquista da independência, o desafio às adversidades, a hostilidade à vagabundagem e as fadigas e sacrifícios em holocausto à tranquilidade familiar? A que devem os povos a prosperidade e a civilização os seus progressos senão à tenacidade burguesa, à segurança a que o burguês aspira, ao seu amor da família, da terra ou do ofício, para ele intimamente ligados pelo mesmo fio de sacrifícios e de esperanças?

Não vituperemos, pois, a riqueza nem os seus cultivadores, mas não nos deixemos corromper pelos seus vícios e defeitos, que todos se casam no capitalismo de especulação e na estimação vaidosa e grosseira do “tanto temos, tanto valemos”.


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Vamos corrigir esse problema