5. Carlos Eugénio Correia da Silva

Um país pode ver-se materialmente devastado e a sua moeda desaparecer no sorvedoiro da desvalorização, remoinho insaciável de tudo o que tece a paz pública; porém com trabalho, com a enxada, a cal e a pedra, ao cabo de poucos anos a primavera florirá nos seus campos, nas fábricas ouvir-se-á a canção maravilhosa e desolada das máquinas e nos migalheiros tilintará de novo a moeda sonante Poderá dizer-se o mesmo da nação que se vê despojada das suas franquias morais e dos seus depositários da cultura?

De tudo o que constitui o património das nações a cultura é a coisa mais frágil e volátil. Para o seu desenvolvimento não há regras, nem leis; apenas condições mais ou menos propícias. Os seus progressos são imprevisíveis, esquivando-se a vaticínios o que o engenho é capaz de arrancar do mundo ideal da ciência, da beleza ou da moral num momento de exaltação interior, ou como regalo da pertinácia diuturna; pelo contrário, as vicissitudes e estertores são fatais quando sobre os insubordináveis do dever, os idealistas, os românticos e os depositários da cultura se estende a foice da morte ou a hecatombe das calamidades públicas. Então, os campos permanecerão idênticos, mas a fisionomia espiritual dos povos pode tornar-se irreconhecível.

A luta pela cultura e pela idealidade é de sua natureza incessante, e porque toda a nobreza do homem consiste em vencer a resistência da matéria, convertendo em realidades o valioso e o verdadeiro, cujo ser é ideal, suspender a luta, ou ignorá-la, é marchar para a vileza.

Foi de tão alto propósito, e não apenas da amizade saudosa, que brotou este livro.

Os que o compilaram e editaram quiseram venerar uma vida, breve e sempre valetudinária, consagrada inteiramente ao culto da ciência e ao apostolado moral.

Ao lê-lo é possível que alguns leitores discordem de certas ideias, e neles me incluo, porque, liberal convicto, o meu território dos valores da pessoa humana tem outras fronteiras e, sobretudo, o que aliás é adjetivo, diversa orgânica na sociedade civil. É possível ainda que outros, de olhos prospetivos e de costas para o passado, tenham a sensação de se encontrarem com um transviado, que, saudoso do bon vieux temps, viveu na incompreensão do mundo que o rodeava. As reflexões sobre Cícero e o Conde de Sabugosa, assim como o magistral ensaio sobre “Os vencidos de Évora-Monte”, sem dúvida discutível mas tão profundo nos alicerces morais e lógicos, não sugerem o drama interior do inadaptado?

Todas as dúvidas e adversativas abdicam, porém, perante a grande ideia e o fim nobre que dominam este livro: o combate ao relativismo moral e à política que Platão simbolizou em Calides.

Numa época e numa sociedade em que a grande maioria pensa e atua sob o signo do provisório, confiando ao amanhã progressivo e ao concerto provável das circunstâncias exteriores a solução sempre urgente dos problemas íntimos e de cada um, não há porventura galhardia na afirmação do absolutismo do bem, do belo e do verdadeiro, e nobreza moral no intento de arrancar os homens à instabilidade do transitório, isto é, à idolatria do progresso, para os reinstalar no sentimento da eternidade?

A posse deste estado de espírito, que para alguns é o termo laborioso de dúvidas e meditações especulativas, foi para Carlos Eugénio uma das dádivas da crença religiosa; e ter compreendido cedo o que ele desentranha na ação e na visão da história humana é talvez a marca singular deste moço no movimento católico da sua geração.

Corno nenhum outro, ele foi o protesto da crença contra o ceticismo e a inércia do juízo, da conceção religiosa da vida contra a conceção laica da sociedade, da estabilidade dos valores morais contra a retificação incessante dos ideais.

Ele deveu sem dúvida à viveza espontânea da inteligência e à assombrosa fidelidade da memória a penetração do juízo e a maturidade do saber, mas a influição das disposições congénitas desviá-lo-iam, como é vulgar na nossa juventude das escolas, para o diletantismo e para a vadiagem intelectual se não houvesse sido cultivado na pedagogia do esforço. Onde há na geração nova, educada na pressa, com a pedagogia da facilidade, desde o desterro das fadigas do dicionário, isto é, da caça às ideias nítidas e aos termos adequados, até ao espetáculo do cinema chamado educativo, o qual torna o espírito servil a visualidades e puramente passivo, quem possa rememorar, como Carlos Eugénio, a adolescência do colegial treinado no esforço da inteligência e da vontade?

Se pensar com coerência consiste em encadear logicamente as ideias, a arte de bem escrever reside na escolha e disposição das palavras adequadas ao pensamento. O pensamento e a sua expressão são coisas diversas, mas é acaso possível surpreender a claridade de um juízo através do nevoeiro de termos equívocos e confusos?

O acolhimento da primeira palavra que ocorrer ao bico da pena pode dar, e dá, a rapidez da redação; não gera, porém, nunca a arte de bem escrever. Ela é, quase sempre, a recompensa tardia do esforço de procura e de comparação dos termos, e este esforço, se é possível no exercício da língua materna, é incomparavelmente maior no trato de uma língua morta. O seu estudo obriga a manusear o dicionário, a apelar para a memória e para a reflexão, a porfiar na presa da expressão fugidia, e tal esforço e treino conduzem insensivelmente à iniciativa pessoal, à virtuosidade literária, à nitidez das ideias, à clareza e vigor do espírito, ambição suprema do escritor.

Por isso, a educação clássica há de ser sempre fermento do gosto e da pujança intelectual, mormente quando ao exercício da composição acrescer a explicação das leituras — duas coisas desterradas do nosso ensino secundário e cuja ausência solta a confusão mental e a corrupção da linguagem.

Carlos Eugénia foi educado nesta arte, e com que grata veneração recordou sempre o P. Albert Charpine, seu mestre de humanidades, ou antes de “retórica”, no amplo e nobre sentido francês!

O professar de Friburgo iniciou-o na lição viva e perene dos clássicos. Com ele aprendeu a conhecer os antigos, a intuir a serenidade da beleza, a ordenar judiciosamente as ideias, a exprimi-las com concisão e elegância, a exercitar-se na crítica, e se é certo, para glória da Faculdade de Letras de Lisboa, que Carlos Eugénia devia a formação científica aos grandes mestres José Maria Rodrigues, José Leite de Vasconcelos e José Joaquim Nunes, não menos certo é que foi o pedagogo de Friburgo quem o ensinou a granjear nas disciplinas da eloquência e da poesia o tato delicado e o discernimento seguro.

Graças ao seu ensino, ele ficou cativo da beleza que não morre e daqueles escritores como Corneille, Racine, Bossuet, Fenelon, André Chénier, onde o sulco do classicismo, romano ou helénico, se vincou indelevelmente.

O conhecimento e a veneração da antiguidade, porém, não lhe paganizaram o espírito. Sobre o pensamento de romano — algumas vezes me disse que pensava em latim — ardia, como nos grandes da nossa melhor tradição humanista, a alma de cristão, e quer-se melhor testemunho do que este livro?

Ele representa a florescência de uma educação rara no nosso meio, os méritos da pedagogia do esforço e da educação clássica, e, sobretudo, o dom  incomparável do sentimento do Espiritual, ou, para empregar as mesmas palavras de Carlos Eugénia, “o sentimento e o amor desinteressado de um objeto de ordem espiritual, ou que o sentimento espiritualiza”.


?>
Vamos corrigir esse problema