6. Agostinho de Campos e Vergílio Correia

Ocorrem em breve oitenta anos sobre a estadia de Alexandre Herculano em Coimbra, de visita aos arquivos da cidade. Assistiu então, num domingo de Junho, ao capelo do Dr. Levi Maria Jordão. Eu não sei se a sensibilidade do romântico, que situara o romanesco na meia-idade peninsular, se ofendeu com a dedada pombalina no ritual dessa cerimónia, e se a erudição do historiador, o primeiro a apreender claramente o relativismo das épocas, discriminou sobre o incontaminado e ingénuo simbolismo da láurea medieval a vaidade pomposa e quase agressiva do século do absolutismo regalado.

Não sei, insisto; mas o que todos sabemos é que o homem íntegro, que jamais mentiu a si próprio e teve a glória de concorrer para que no seu século não fosse possível a mentira coletiva, a insetização da vida e a nódoa moral da coação e da dissimulação do pensamento, escreveu no caderno dia jornada esta impressão do dia: “Conveniência da conservação destas fórmulas”.

Herculano calou as razões, embora nas concisas palavras se adivinhe a réplica ao questionário íntimo sobre o anacronismo ou atualidade da cerimónia de hoje, idêntica sensivelmente, no interior desta sala, à da dessa tarde de 1853.

Há talvez seiscentos anos que na universidade se realiza a festa de hoje, com vicissitudes várias e ritual diverso, ora com simplicidade jovial, ora com pompa mais ou menos cerimoniosa, e se nem a antiguidade nem o assentimento de um iconoclasta da estirpe de Herculano a justificam em si mesma, tão longa duração e tão refletido aplauso parecem dizer-nos que ela se furta à caducidade das formas e conteúdos da vida universitária.

Promana de uma coisa substantiva, permanente e duradoira. Qual é essa coisa, Senhores?

Eu creio que a essência e a estrutura da universidade estão hoje em crise, quer dizer, tornaram-se problemáticas.

Quer queiramos, quer não, começa a rodear-nos o crepúsculo, e para não nos volvermos cegos e anacrónicas carecemos de harmonizar as formas docentes com o sentido da nossa época. À direção horizontal do ensino, coerente com a da atividade científica orientada para o aumento em extensão dos conhecimentos, os novos tempos opõem a direção vertical, isto é o exame e clarificação do sabido. À era do especialismo, a era nova das ideias gerais consistentes e coerentes, e em vez da monografia e do sábio solitário, quem não nota a estimação crescente pelos trabalhos de síntese e a associação para empresas coletivas de revisão?

Tão profundo câmbio de orientação impõe necessariamente um rumo novo à estrutura e aos ideais universitários.

Coisas fáceis para nós, professores da Universidade de Coimbra, porque recebemos uma herança, que não se improvisa: a experiência histórica. Aprendemos através da nossa existência multissecular a distinguir o rito caduco do ídolo indestronável. Nem as reformas nos espantam de surpresa, nem os reformadores nos colhem desprevenidos, e aquilo que para alguns parece ser o olhar mortiço do ancião reflete afinal a serenidade de quem, tendo visto muito, viu coisas que pareciam promissoras e foram estéreis e coisas que pareciam infecundas e foram criadoras. Sabemos que as reformas passam e só permanece o amor da ciência e do ensino, e por o 'sabermos é que não admitimos hierarquias no nosso seio e nos congratulamos sempre com a vinda dos que nos continuam e excedem. Este é, Senhores, o nosso ídolo; o seu rito pode variar e é necessário mesmo que varie, mas o ídolo, esse persiste, e porque a festa de hoje é a expressão simbólica do culto do ídolo, ela resistiu, ela resiste, ela resistirá às vicissitudes e contingências dos tempos.

Minhas Senhores e meus Senhores:

A universidade dos mestres e dos estudantes não se ajunta hoje para saudar esperanças e incitar a juventude a reconhecer-se nos doutorandos. Não. Nem o Sr. Vergílio Correia, nem o Sr. Agostinho de Campos acabam de sair da escolaridade transitória em demanda da escolaridade vitalícia, e ambos afinal atingiram já a altura da vida em que as esperanças cedem tristemente o lugar às certezas. Para mim, confesso, esta transposição embaraça-me. Quando saudamos um doutorando jovem, quase sempre secretamente nos aplaudimos a nós próprios, ou pelo espelho em que nos julgamos vaidosamente refletidos, ou pela apetência do que desejaríamos ser e o jovem promete; e visto que os Senhores Vergílio Correia e Agostinho de Campos nos reprimem, talvez contra sua vontade, o gesto escultural e magnífico do semeador de esperanças e não consentem que saboreemos o aplauso egoísta, cumpre-me, Sr. Reitor, atrair a vossa atenção para os frutos que eles nos oferecem e para as razões puras de aplauso, que demoveram a Faculdade de Letras a solicitar-vos que os doutoreis honoris causa. E assim, em vez de prelibar a vida que viverão, e lhes desejo longa e serena, devo debruçar-me sobre a vida que viveram, para lhes apreender o cunho singular e pessoal.

A reforma pombalina da universidade marca uma data sem par na nossa corporação. Nunca lhe louvaremos assaz os méritos e benefícios; mas, hoje torna-se claro que os reformadores, deslumbrados com o ideal mecânico-racional das ciências da natureza, deixaram na penumbra as ciências do espírito e organizando a universidade em função dos conhecimentos que se adquirem pela investigação dos factos, esqueceram o espírito que os conhece e os ideais que ele intui ou visiona. Situando-se num mundo de valores absolutos e canónicos, desterraram todas as disciplinas compreendidas na história e descrição do espírito humano, as quais poderiam gerar o sentimento da transitoriedade e do relativismo. Daí o autodidatismo se ter senhoreado dessas disciplinas, porque, como haveis notado, foram autodidatas quase todos, senão todos os críticos e historiadores da arte, da literatura e da sociedade nos séculos XVIII e XIX.        

Pelo que à história literária respeita ela balbuciou pela primeira vez com Faria e Sousa, nos discursos preliminares da Fuente de Aganipe; cresceu com a erudição meticulosa das Memórias de Literatura da Academia das Ciências e com o patriotismo eloquente da geração romântica, mas só atingiu a virilidade nos nossos dias com Teófilo Braga, num sentido positivista e biográfico-sociológico, com D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos, numa direção histórico-filológica, e com Mendes dos Remédios, com objetivo biobibliográfico, para só falar dos mortos. Aos três mestres coube a glória de instaurarem oficialmente o ensino da história da literatura pátria, mas na sua formação foram autodidatas e o autodidatismo continua a ser o signo da disciplina interpretativa dos nossos ideais coletivos, porque nenhum sobrevive na mente e na ação de um discípulo. Tão longo arrazoado, Senhores, premeditadamente o escrevi para vos advertir do autodidatismo do Sr. Agostinho de Campos. Não vos aterreis com a herética palavra, que neste local e neste momento soa a escândalo. Eu não vos quero magoar recitando o elogio do autodidata, que não raro se ajanota em diletante; contudo sempre vos direi em segredo que muitas vezes me inclino perante a sua inteligência admirável, fresca, sem o cheirinho a bafio que circunda algumas obras sábias de metódicos universitários.

Que os manes de Oliveira Martins me perdoem! Se me inclino perante a inteligência do autodidata, se lhe cobiço o entusiasmo alacre, quase sempre me irrita pelo culto que rende à feia deusa da pressa e ao demónio da inconstância. Como autodidata, o Sr. Agostinho de Campos possui estas virtudes e naturalmente estes defeitos.


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