6. Agostinho de Campos e Vergílio Correia

Pelas virtudes da inteligência, o seu nome e às vezes os seus juízos ecoam pelo país; pelo entusiasmo comunicativo, tem derramado robustas certezas em almas tíbias; pela ironia sorridente, tem feito obra de moralista e propagado a mais saudável e talvez a única pedagogia aceitável, a da “Casa de pais, Escola de filhos”; e pelo culto da deusa da pressa e do demónio da inconstância leva escritos numerosos livros, dos quais alguns tenho lido na concentração do gabinete e outros à sombra de uma árvore, como quem conversa com um amigo distante e delicioso.

Perdoai-me, Senhor Reitor, se me abandonei à ironia, “a mais doce fruta da terra” no dizer do cronista João de Barros, e perdoai-me sobretudo pela demora em vos falar das razões que trouxeram tão tardiamente àquela cadeira, de assento cómodo e de ocupação difícil, o Sr. Agostinho de Campos.

A contribuição máxima do Sr. Agostinho de Campos para a história da língua e da literatura nacionais reside nalguns estudos, designadamente o excelente capítulo da História da Colonização Portuguesa no Brasil e nos vinte e três volumes da sua Antologia Portuguesa. Por jornais do velho e do novo continente, revistas portuguesas e brasileiras, e livros vários tem advertido, ensinado e estudado numerosas questões filológicas e crítico-literárias, muitas das quais esperam a integração em volume e a encadernação duradoira. Não sendo filólogo eu não o posso julgar; contento-me em lhe render graças por me ter instruído de muitos deslizes, vícios e erros de feio dizer, e em juntar o meu aplauso ao de tantos que o veem na dianteira da infatigável campanha da vernaculidade.

Nós outros universitários, que vivemos uma vida tranquila e possuímos a fortuna, rara no nosso tempo, de poder fazer sem pressa a colheita de factos e a colheita das ideias, sofremos com mau-humor a vertigem do jornalista.

Talvez tenhamos razão, na medida em que o mau-humor significa evasão do quotidiano e do momentâneo; mas quando nos encontramos perante um homem que ao dever, quase diariamente cumprido, de orientar e esclarecer o público, com reflexões sérias e graves, dispõe ainda de tempo para no período limitado de seis anos fazer a obra vasta e benemérita da Antologia Portuguesa, insensivelmente nos descobrimos perante o esforço admirável. E que esforço, Senhores!

O Sr. Agostinho de Campos ao empreender a Antologia Portuguesa não acometeu uma empresa inédita. Precederam-no no século passado Garrett, com a ideia e a traça não respeitada do Parnaso Lusitano, e os irmãos Castilhos, com a Livraria Clássica Portuguesa, mas tendo cronologicamente predecessores desta estirpe, em rigor só o Sr. Agostinho de Campos fez obra viva e fecunda. Ele fez patriotismo esclarecido, despertando o sentimento da continuidade moral das gerações, sem o qual uma Nação degenera em agregado de pernas, de braços e de ventres; ele despertou o espírito crítico, sem o qual um Estado se avilta na intolerância; ele incutiu o amor e conhecimento da língua, sem os quais a autonomia moral de um povo se quebranta; e fazendo patriotismo construtivo, e criando almas de portugueses conscientes, e elevando os espíritos às instituições da beleza, o Sr. Agostinho de

Campos talhou ao mesmo tempo para si a singularidade de uma atitude na contemplação da obra literária.    

Perante a obra literária, duas grandes atitudes são possíveis, cada uma das quais comporta uma variedade de formas igualmente possíveis: a explicação, e a compreensão. Explicar, é fazer sempre obra de ressurreição, e tanto mais perfeita, quanto mais objetiva e impessoal. É situar o autor na sua época, decompor-lhe a vida na sucessão dos incidentes e episódios, sondar-lhe as fontes intelectuais, medir-lhe a influência. Compreender, pelo contrário, não é dizer tudo, mas o necessário, não é ser impessoal, mas pessoal, e sobretudo não abandonar nunca a realidade viva da própria obra. A explicação gera a história literária, a compreensão, a crítica literária, e se as duas às vezes se conjugam, nem por isso obstam a que as separemos, pela função e finalidade diversas. O Sr. Agostinho de Campos, nos prefácios da sua Antologia tomou frequentemente as duas posições, mas fez acima de tudo obra de crítico, e tão perfeita e sagaz, que considero os quatro volumes do seu Camões Lírico, especialmente, o mais acabado modelo da crítica que faz compreender e sem par na técnica histórico--crítica do nosso tempo.          

Minhas Senhoras e meus Senhores:

Para apreciar os homens, para os situarmos no seu clima espiritual, para lhes apreendermos a sua mensagem, de nada serve o calendário. Dispensemo-nos, pois, de apurar as efemérides cronológicas dos Senhores Agostinho de Campos e Vergílio Correia, porque nascer e viver são acidentes biológicos e muitas vezes desempenhar certos cargos, acidentes de trabalho. A duração de uma vida interessa-nos, assim, na medida em que ela serve de suporte a atitudes e complexos ultravitais, isto é, ideais, e portanto uma vida não se aprecia em função do calendário, mas psicológica e socialmente por uns seres que se não veem nem tocam, e são tiranicamente reais e supremamente objetivos: as ideias. Em rigor mesmo, uma vida humana só começa quando entra em contato com esses impalpáveis seres, e quando esse contato tem a marca da singularidade e é partilhado por vários, nós dizemos até que surge uma geração nova. Os que nunca contactaram com as ideias nem são novos, nem são velhos: existem.           

Destes postulados, que espero não leveis à conta de paradoxos brincalhões, irrompe com pé ligeiro a pergunta: Pertenceu o Sr. Agostinho de Campos a uma geração nova?

O Sr. Agostinho de Campos quis poupar-nos as fadigas da investigação, trazendo até nós, para o apadrinhar, o Sr. Alberto de Oliveira, poeta, crítico e diplomata com honrosíssima folha de serviços ao país, que os vindouros conhecerão, pelo menos, através das suas Memórias da Vida Diplomática. Associando-o à sua receção, o Sr. Agostinho de Campos sacrificou sem dúvida à amizade, mas consciente ou inconscientemente sacrificou também à mensagem da sua geração.

Coisa difícil, Senhores, a apreensão da essência de uma geração, porque nascendo diariamente indivíduos e em todos os lugares, o calendário, torno a repeti-lo, de nada nos serve, visto que, de uma maneira absoluta, nem no tempo nem no espaço há gerações novas. Ser jovem e ser novo não são termos sinónimos e para encurtar palavras, a novidade consiste na apreensão de valores e ideias ou na sua realização com gesto peculiar.

E assim no panorama da juventude, biológica e globalmente considerada, pode haver, e felizmente há, por vezes várias gerações novas, isto é, maneiras diversas de intuir a vida, de a ordenar sob a forma de mundividência, de apetecer e realizar valores diferentes. É o ritmo oscilante e vário do esforço para tornar dinâmicos os ideais inertes através da sucessão biológica das gerações que tece a história, pelas seus divórcios e pelos seus desposórios com esses impalpáveis seres, que são as ideias e os valores. Os Senhores Agostinho de Campos e Alberto de Oliveira, com biografias diversas, foram novos na juventude comum e sacrificaram a ideais idênticos, e porque jamais mentiram à sua vocação profunda, da vida de ambos se solta a mesma melodia, que eu não sei se sou capaz de entoar, por ter afeiçoado o ouvido a outra música.


?>
Vamos corrigir esse problema