6. Agostinho de Campos e Vergílio Correia

No decurso do século XIX houve talvez oito ou nove gerações novas, e durante a escolaridade dos Senhores Agostinho de Campos e Alberto de Oliveira — ia-me esquecendo de dizer que estes Senhores são, como o Sr. Vergílio Correia, bacharéis em direito — com boa vontade encontraremos duas gerações diversas. As duas gerações marcaram com seu selo inconfundível a vida portuguesa, e das respetivas mensagens se pode dizer que procedem as divergências estéticas e até políticas que felizmente dividiram a sociedade portuguesa nos últimos trinta anos. Sob a bandeira de duas revistas literárias, fugazes como os fogachos —Insubmissos e Boémia Nova—, se repartiram os jovens de então, que poetavam e discorriam em prosa mais ou menos tolerável.

Eugénio de Castro, João de Meneses e Francisco Bastos, à frente dos insubmissos, arvoravam o estandarte da individualidade e do universalismo estético; pelo contrário, António Nobre, Alberto de Oliveira, Agostinho de Campos e Alberto Osório de Castro, deslumbrado mais tarde pelo exotismo oriental, ensaiavam o que pouco depois se iria chamar o nacionalismo na arte e na conceção da vida.

Quando evocamos hoje o ambiente estético e ideológico desse findar do século XIX, compreendemos que o nacionalismo estético fosse uma atitude possível, e se apresentasse até com as vestes da modernidade. Compreendemos a nostalgia e as invocações magoadas de António Nobre, e compreendemos sobretudo que o nacionalismo carecesse do seu teórico e do seu apologeta, do verbo que o revelasse na argumentação dialética e no transporte sentimental.

Esse verbo encarnou-se no Sr. Alberto de Oliveira, e num livro, que ficará na história da literatura portuguesa com a sigla dos manifestos renovadores: as Palavras Loucas. “O poeta do Só foi para mim um messias literário, de cujo evangelho pretendi arvorar-me em São Paulo”, confessou o Sr. Alberto de Oliveira. “E as Palavras Loucas são bem a crónica desse apostolado fervente, em que ao entusiasmo pelo talento de António Nobre se juntava em mim a convicção, cada hora mais imperiosa, de que o regresso à tradição, e o amor e o estudo desse tão pequeno como grande universo que era a nossa pátria, tinham de ser os lemas fecundos, e que então pareciam novos, da geração a que pertencia”. Eu penso com Eça de Queirós, na famosa epístola que dirigiu ao autor das Palavras Loucas, que “a humanidade não está toda metida entre a margem do rio Minho e o cabo de Santa Maria — e um ser pensante não pode decentemente passar a existência a murmurar extaticamente que as margens do Mondego são belas”; mas quando contemplo a vida do Sr. Alberto de Oliveira, eu vejo-a admiravelmente coerente, e quando leio os seus livros, como esse penetrante ensaio crítico e depoimento autobiográfico sobre Eça de Queirós, sinto que o nacionalismo, feia palavra que Garrett detestava, e me faz lamentar que não tivesse vingado o neogarrettismo da campanha do Sr. Alberto de Oliveira, contém uma parcela de verdade. E esta verdade, Senhores estudantes, exprimo-a no anelo do advento de uma nova geração, que sem ser fria para a amorável casa lusitana, nem renunciar ao típico e ao nacional, se não isole do mundo e do seu tempo e nasça fadada pelo génio para erguer à categoria de emoção universal, sensível em todas as latitudes, o que nos é peculiar e próprio.            

Minhas Senhoras e meus Senhores:

Desejou a minha Faculdade que neste magno ajuntamento da universidade dos mestres e estudantes de Coimbra se festejassem os dois professores que em breve vão ocupar as doutorais por livre convite e meditada distinção. De um vos disse já, Senhor Reitor, em insuficientes palavras, o meu juízo; para o Sr. Vergílio Correia devo atrair agora a vossa atenção, que espero benevolente e generosa.

O Sr. Vergílio Correia é um arqueólogo, é um etnógrafo e é um historiador da arte — três qualidades que se tem predicado e podem predicar-se de várias pessoas, mas que adquiriram na personalidade do Sr. Vergílio Correia uma feição singular e inconfundível, para nós como para os vindouros.

Eu não sei de outra disciplina, como a arqueologia pré-histórica, em que a curiosidade provinciana tenha feito mais incursões devastadoras.

Os rudes sílex não protestam, e porque consentem que deles se diga tudo o que uma imaginação desvairada pode criar, abundam as sensacionais descobertas aldeãs e respetivas teorias lareiras. Quando tenho conhecimento de tais descobertas e teorias, eu, que gosto de me assentar no polo oposto ao do arqueólogo, comovo-me sempre, porque nelas admiro enternecidamente a atividade de um espírito rústico que se não resigna à rusticidade e se sente transportado pela emoção e pelo orgulho da terra em que nasceu e se incorporou. A associação indestrutível do cavador ao sábio talvez seja a coisa mais admirável da arqueologia pré-histórica, tão admirável que a converte até em ciência salutar; mas ao reconhecer a ação de Estácio da Veiga, Santos Rocha, Vieira Natividade e Francisco Manuel Alves, ao ler as obras de pré--historiadores sábios, eu admiro as maravilhas do método e do escrúpulo científico, e inclino-me perante o esforço estupendo dos que, como Martins Sarmento e Leite de Vasconcelos, sabem extrair da pedra inerte a seiva tenaz do sentimento pátrio. Graças à arqueologia sabemos que não nascemos ontem e temos a certeza inabalável de que seremos amanhã, e quando chego a tão grande altura sinto pungir-me este impulso que me leva a procurar no grave a ironia que ele esconde e nem sempre dissimula.

O Sr. Vergílio Correia faz parte destes mestres de patriotismo, e se sou incompetente para julgar os resultadas das suas investigações, a minha sensação da exemplaridade científica dos seus trabalhos de pré-historiador converte-se em certeza, quando vejo o seu livro, El Neolítico de Pavia, publicado pela “Junta para ampliación de estudios e investigaciones cientificas de Madrid”, e o seu nome e a sua obra acolhidos no “Archäologisches Institut”, de Berlim, como único sócio efetivo português.

Como etnógrafo, devemos-lhe a Terra Portuguesa e a Etnografia Artística, uma revista e um livro, onde o sábio deu o braço ao escritor para nos convidar a pousar os olhos citadinos nas modestas, pequeninas e tocantes coisas da arte popular. Num rumo diverso dos Senhores Agostinho de Campos e Alberto de Oliveira, que nas Mil Trovas procuraram a expressão poética dos sentimentos do povo português, e com idêntica ternura, o Sr. Vergílio Correia deteve-se acima de tudo na expressão plástica, isto é, na utilização e transformação da matéria. Quando leio os seus estudos etnográficos e me enterneço com a sua demofilia, insensivelmente revivo a sensibilidade republicana da nossa mocidade, e me honro do camarada de ideias que tão bem serviu o povo, robustecendo as nossas razões de mais o amarmos e servirmos.

Corno historiador da arte, finalmente, o Sr. Vergílio Correia fez da explicação, que não da compreensão apenas, o norte dos seus estudos. E, se assim me posso exprimir, um positivista. Inventaria factos, como ninguém no nosso tempo, e procura as conexões objetivas entre eles, e estes factos e estas conexões se não nascem com o perfume da pura sensibilidade estética é porque aspiram à glória perene da fundamentação científica. Eu não sei se a atitude científica é possível em matéria de arte, porque o artista se não move no reino dos factos, mas dos valores. O belo e a bondade são mesmo as únicas coisas que o homem acrescenta ao mundo; tudo o mais lhe é dado pelo mundo e pode, porventura, uma metódica pensada e criada para a matéria desvendar o que o homem arranca do imaterial e do impalpável? Não sei, repito, nem esta é a hora de o procurar saber; o que sei é que não há um livro seu de história de arte sem factos novos, e que a crítica estética, que visa à compreensão, terá necessariamente de se socorrer dos seus livros. Eles possuem para glória sua e da nossa Faculdade aquele valor dos monumentos eruditos do século XVIII: podemos pensar, podemos querer diversamente, mas jamais os dispensamos, porque neles colhemos a primeira condição de toda a atividade séria do espírito: os factos.


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