Homenagem a investigadores e professores

No dia 4 de Junho de 1944 ficou sepultado nesta terra de Coimbra, que ele tanto sentiu e estudou, Vergílio Correia Pinto da Fonseca, lente de história da arte e de arqueologia na Faculdade de Letras.

Entrara no ensino universitário em 1921, sem concurso, por convite do Conselho da Faculdade, para suceder a Teixeira de Carvalho, o perdulário de graça subtil, de talento leviano e de saber exato, que toda a gente conhecia pelo Dr. Quim Martins.

A um autodidata, sucedia outro, e convidando-as em condições idênticas, a Faculdade, afinal, exprimira a voz do sentimento público, que neles admirava, acima de tudo, o entusiasmo de duas existências devotadas ao estudo, ao amor e à defesa das coisas belas e expressivas do nosso passado.

Vergílio Correia formara-se em direito em 1911, com 23 anos (nascera na Régua, em 19 de Outubro de 1888), mas não se socorreu nunca da carta nem a sua inteligência se deixou contaminar pelo “espírito de advocacia”. A sua índole, de natural desenvolta, irreverente e generosa — a quantos fez bem com a esquerda, sem que a direita desse por tal! —, sempre se sentiu cativa dentro da rigidez formal das instituições e no leve, ou antes, no mínimo contato indispensável com os códigos talvez tivesse aprendido apenas a exprimir mais arrazoadamente o ardente anelo da justiça e da igualdade perante a lei e as condições saciais da existência que lhe alentou o ideal de cidadania.

Se, pela índole e pela conformação mental, que sempre preferiu a robustez dos factos densamente exatos e afetuosamente simples à dialética das ideias gerais e às distinções subtis da argúcia, Vergílio Correia foi um estudante-jurista contrariado e insignificante, em compensação raríssimos rapazes obedeceram, como ele, ao apelo da vocação imanente, que o levou, como a nenhum outro, a conviver, com alvoroçada intropatia, com a paisagem coimbrã, a calcorrear alegremente caminhos e veredas de aldeias e casais, a decifrar infatigavelmente o espólio sumido e velado das antigualhas, das usanças e costumes das gentes de Coimbra e seu termo.

Foi aqui, em Coimbra, que os seus “vinte anos perscrutadores e facilmente emocionáveis”, como ele próprio os qualificou, em 1934, no estudo sobre A Pintura em Coimbra no Século XVI, bateram os alicerces da futura personalidade, gravando-lhe absorventemente no espírito a paixão da arqueologia e da etnografia. Ele o contou nesta página tocante das Notas de Arqueologia e Etnografia do Concelho de Coimbra (1940):

“De 1906 a 1911 frequentei direito na Universidade de Coimbra.

“Trazia já, quando vim para a cidade do Mondego, o gosto pela arqueologia, histórica e pré-histórica. Esse gosto desenvolvera-se, no moço de dezassete anos, por motivos vários, pessoais e de circunstância.

“Pessoalmente apaixonara-me, em todo o curso liceal, o estudo da história antiga, e compreendera que os documentos arqueológicos eram o remanescente material dessa história. Na livraria de meu pai existia o volume de introdução da História Universal de César Cantu, consagrado à pré-história. Li-o e reli-o, e o que ali se narrava dos tempos primitivos da humanidade, maravilhou-me.

“Passava as férias numa propriedade que possuíamos junto ao Senhor da Serra, de Belas. Nessa propriedade, o Montabrão, existia uma anta, descrita por Carlos Ribeiro, nos Estudos Pré-Históricos. Na vizinha Quinta Grande havia outra, e mais dólmenes ainda, pelas vizinhanças. Cedo os frequentei e apreciei. Por outro lado, corria-me nas veias o sangue andarilho de meu pai, agrónomo distinto, que percorrera, no desempenho de missões da sua profissão, todo o país, e para quem o viajar era um prazer.

“Coimbra, dando-me a liberdade e o tempo necessários para estudar o que mais me agradasse, oferecendo-me as facilidades de um meio natural de sugestiva beleza, que o trabalho dos homens através das idades irrigara da vida latente do passado, proporcionou-me as condições de desenvolvimento de uma vocação. Em Coimbra, no ambiente arcaico da cidade, na contemplação dos seus monumentos, no seu museu do Instituto, me fiz arqueólogo, como em contato com os costumes do povo, pelos arrabaldes, me fiz etnógrafo.

“Nas viagens que realizava pelos arredores, a pé ou de bicicleta, sozinho ou acompanhado, fugindo ao ambiente monótono da escolaridade, fui tomando notas, compondo uma espécie de roteiro arqueológico e etnográfico do concelho de Coimbra.

“Quantas, fatigantes, caminhadas refletem pois as notas que seguem, e que, trinta anos decorridas, publico sem alteração! Mas também que enormes e perduráveis alegrias, na descoberta feliz dos sítios arqueológicos; no desvendar das paisagens ignoradas deste recanto idílico do mundo; no abraço amoroso às costumeiras e às artes do povo!”

Se Coimbra lhe despertou a vocação, que aliás nascera com o atrativo da graça literária e logo sobressaiu nas publicações de estudantes, notadamente na Rajada, a revista de Afonso Duarte, o poeta da sua geração, foi, no entanto, a entrada para o Museu Etnológico de Belém corno conservador, pouco depois da formatura, que definitivamente a consolidou e, sobretudo, lhe deu densidade científica. Sob a direção do Dr. José Leite de Vasconcelos, o egrégio fundador do museu, realiza as primeiras explorações arqueológicas metódicas, de objetivo determinado — de começo à roda de Lisboa, sobre as idades da pedra (Lisboa Pré-Histórica, 1912-13), a cujo conhecimento o seu nome ficaria ligado, e a seguir, no Alentejo, em Pavia, onde em 1914-15 inicia “a maior e mais completa exploração dolménica feita até hoje em Portugal”, que, concluída em 1918, já sem encargo oficial, lhe forneceu o material para a notável monografia El Neolítico de Pavia, editada em Madrid, em 1921, pela “Comisión de investigaciones paleontológicas y prehistóricas” da então acreditada “Junta para amphación de estudios y investigaciones científicas”.

O íntimo contato com a realidade, ou, por outras palavras, o abandono do livro pela observação e inquérito pessoal dos factos, fez de Vergílio Correia o mestre consumado na exploração arqueológica de uma estação, pela sagacidade do plano, pela segurança meticulosa da execução e pela fecundidade dos resultados, de par que lhe conformou cientificamente o espírito, afastando-o da atitude meramente erudita, de conhecimento das opiniões alheias.

Ao contrário dos escritos arqueológicos de Leite de Vasconcelos, que sempre nos dão o historial dos temas, as investigações de Vergílio Correia foram dominadas pela paixão da descrição objetiva e do inédito; se aquele foi o criador de sistematizações e, sobretudo, o mestre admirável que ensinou a apreender e a estimar o valor da continuidade histórica, este foi acima de tudo o expositor de factos precisos e densos, cujas dimensões teóricas, ou melhor sistemáticas, nem sempre o prenderam, talvez pela vibração do sentido humano e do alor estético, que jamais deixou esmorecer na frialdade da erudição.

“Foi a Portugália, a admirável revista dos portuenses”, disse na conferência sobre Santos Rocha, Fundador dum Museu (1941), “que imprimiu na minha vocação de pesquisador uma marca indelével, humanizando-a, modernizando-a e afinando-a literariamente. Nas páginas da Portugália aprendi que a arqueologia e a etnografia tinham mais alto destino e função, intelectual e nacional, que satisfazer a curiosidade de uns tantos especializados, ou proporcionar elementos a empedernidos catalogadores de factos ou materiais.


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