Homenagem a investigadores e professores

“Os estudos de Martins Sarmento sobre as decorações citanienses, e os de Santos Rocha acerca da cerâmica pintada de Santa Olaia, publicados nessa revista, versando problemas de arte e arqueologia dos povoadores do solo português à data da chegada do romano conquistador e rapace, tiveram decisiva influência na sequência das minhas predileções no campo pré-histórico. Sempre a segunda idade do ferro, aquela em que floresceu a civilização dos lusitanos, me ficou interessando particularmente. O contraste entre a civilização exótica, geométrica e utilitária que os romanos transportaram e transplantaram, e a cultura e a arte indígenas — compósito particular resultante da mescla de influências central-europeias, orientais e helénicas, atuando sobre um fundo tradicional arcaico —, as quais, sem a sobreposição latina teriam evolucionado independentemente, com diretrizes próprias, afirmou-se desde então no meu espírito, com o predomínio de interesse pelas manifestações de vida antiga que idiossincrasicamente me emocionavam”.

O reparo acrimonioso, latente nestes expressivos períodos, alvejava a conceção que Leite de Vasconcelos servia com exclusivismo absorvente; não obstante, como o sábio das Religiões da Lusitânia e da Etnografia Portuguesa, exemplar na perseverança do trabalho e nunca excedido na ânsia de perscrutar a índole e as manifestações do povo português, Vergílio Correia ambicionou também, embora com mente diversa e mais limitadamente, percorrer o passado da nossa gente através dos tempos pré e proto-históricos e das eras luso-romana e visigótica. Para o conhecimento destas idades ele contribuiu, como raros, com trabalhos originais e fecundos, que perdurarão, a um tempo para o homem de gabinete e para o próprio homem da rua, como a espetacular e atrativa exumação do oppidum de Conimbriga.

É o viço dos factos bem talhados que empresta aos estudos de Vergílio Correia o cobiçado valor da duração, mas isto não significa a incapacidade do seu espírito para a síntese. Sem dúvida, o absorvente sentido da positividade e o esmero no apuramento dos factos, fossem monumentais, fossem documentais, afastavam-no da teorização e do espírito de sistema; no entanto, sempre que a sua inteligência teve de defrontar-se com a construção de uma síntese, soube erguer-se à altura dominadora, e espalhar a vista, com coerência lógica e consistência material, sobre a dispersão confusa do acontecer. É o caso, por exemplo, pelo que à arqueologia respeita, da admirável comunicação ao Congresso do Mundo Português sobre A Romanização da Lusitânia (1940), de feição original e estrutura diversa da que Leite de Vasconcelos havia traçado nas Religiões da Lusitânia, com robusta, mas descarnada solidez.

Ao arqueólogo, que jamais interrompeu o labor e sempre andou de braço dado com o etnógrafo, veio juntar-se o historiador da arte, cuja primeira manifestação cremos ter sido o estudo sobre a Igreja da Lourosa da Serra da Estrela, publicado em 1912. As três disciplinas conviveram fraternalmente no seu espírito, tanto mais que as considerava metodologicamente da mesma maneira e com idêntico sentido de objetividade: se a exploração do terreno determinava o único caminho admissível na arqueologia, a colheita direta dos factos e dos testemunhos documentais, auxiliada pela comparação de visu, pareceu-lhe ser também o método idóneo da etnografia e da história da arte.

Assim, não surpreende que em vez de um grande leitor, Vergílio Correia tenha sido o incansável andarilho a quem as distâncias não atemorizavam, pouco exigente e sempre com o pé no estribo de todos os meios praticáveis de locomoção. Viajar tornou-se-lhe, até, um requisito de estudo, e viajar na Itália, o teatro incomparável da nossa civilização latina, depois de conhecido o país e calcorreados os campos de Coimbra, o sítio de Lisboa e a região transtagana, afigurou-se-lhe condição primária e indispensável da formação científica e da educação do bom gosto.

A desejada viagem realizou-se em 1914; com os olhos sempre cativos da paisagem coimbrã e das usanças do nosso povo, dir-se-ia ter visto então a Itália principalmente como prolongamento do que lhe era familiar. Ë o que sugere a Etnografia Artística (Notas de Etnografia Portuguesa e Italiana, 1916), o seu primeiro grande livro, no qual associou afetivamente os mais tocantes estudos de etnografia portuguesa aos que lhe acordaram na alma a “devota peregrinação ao mais belo santuário do mundo, ao mais rico relicário de todos os tempos e religiões...”. Creio que esta viagem lhe suscitou, acima de tudo, a sublimação da sensibilidade, e quando mais tarde voltou, em três ou quatro jornadas, à “terra cordialmente acolhedora” de Itália, foi já com o propósito de investigar em arquivos — veja-se o livro Sequeira em Roma (1923) — ou de observar certos monumentos e a condução de escavações, como as de Pompeia.

Foi este mesmo espírito e foram estes mesmos objetivos que o encaminharam reiteradamente para Espanha — veja-se, por exemplo, o prefácio do Livro dos Regimentos dos Oficiais Mecânicos da Mui Nobre e Sempre Leal Cidade de Lisboa (1572), publicado em 1926 — e para o Norte de África, ora para examinar, na Argélia e na Tunísia, os despojos da civilização romana, da qual foi, porventura, de André de Resende aos nossos dias, o português mais circunstanciadamente conhecedor e esclarecido, pelo menos dos monumentos relacionáveis com os do nosso território, ora para inquirir a veracidade de certas conceções, como a que o levou em 1923 a Marrocos, com o intento de contraprovar a hipótese da “influência mauritanense sobre a arte portuguesa do começo do século XVI” (ver Lugares de Além. Azamor, Mazagão, Çafim, 1923). Sem estas investigações documentais permaneceriam ignorados ou desfigurados vários problemas da história da arte, especialmente da pintura, e sem estas observações in loco não teria sido possível a surpreendente clarividência com que previa o que a enxada do cavador haveria de desenterrar ao seu mando no oppidum de Conimbriga — coisa admirável e que só vista permitia sentir a vibração uníssona do talento, do saber e do entusiasmo, a alegria senhoril de quem logra captar com a inteligência perspicaz o facto recôndito e aparentemente insignificante.

Ao entrar na faculdade, em 1921, deixando o Museu das Janelas Verdes, onde servia como conservador, salvo erro, desde 1915, Vergílio Correia estava plenamente de posse dos seus métodos e objetivos da investigação, que, sem repudiar os amores da juventude pela etnografia, como testemunha a valiosíssima revista Terra Portuguesa (1916- -1927), tendia agora para se concentrar na história da pintura e na arqueologia, a afeição sempre viva. As responsabilidades docentes, a repugnância, a um tempo visceral e refletida, pela pacotilha dos livros feitos às avessas e pela imposturice das ideias balofas, a consciência da severidade da história como ciência — tudo coincidia, unanimemente, para o firmar na positividade do método, para o afervorar no trabalho viril e resoluto, para lhe despertar o pensamento das coisas grandes feitas em grande...

Domina-o, sem ambages nem hesitações, o puro sentido da objetividade e das correlações imediatas que ele implica; por isso, Vergílio Correia foi realmente um homem de espírito científico, que elabora e raciocina com conceitos precisos, robustos, impessoais, e não um crítico que se deixa transportar pelo enlevo da sensibilidade ou pelo pressentimento alvoroçado da intuição. Retrata-o, cientificamente, esta página do seu Vasco Fernandes, Mestre do Retábulo da Sé de Lamego (1924), livro capital e decisivo, no ponto de vista a que obedeceu:


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Vamos corrigir esse problema