9. Ricardo Jorge na historiografia cultural portuguesa

Na personalidade de Ricardo Jorge conjugaram-se admiravelmente a exatidão da mentalidade científica, a multiplicidade das curiosidades intelectuais e a pujança dos recursos literários. Mestre na cátedra, no exercício de funções públicas e no desempenho de comissões oficiais, foi mestre igualmente na aula livre do pensamento responsável, da consistência dos juízos e do atrativo do bom gosto. Formado na disciplina científica, o seu pensamento dirigia-se para o objeto em causa, sem desvios circunstanciais ou adjetivos, mas esta exigência da mente que aspira a convencer, mostrando ou demonstrando, e não a persuadir e muito menos a seduzir, acompanhou-se frequentemente da consideração retrospetiva e da referência a factos transatos. O apuramento preciso dos factos, as análises exatas e as correlações logicamente fundadas eram requisitos desta atitude, de que em 1899 logo deu notável testemunho com a Demografia e Higiene da Cidade do Porto, parte primeira de um largo estudo sobre o clima, a população e mortalidade no burgo portuense que Sampaio Bruno justamente exalta em O Porto Culto, como expressão de “uma faina meticulosamente conscienciosa, tão prolongada, miúda e insistente que nos maravilha e assombra”.            

A combinação do exame atual do objeto com a respetiva consideração histórica que as suas páginas frequentemente patenteiam exigia o concurso da atitude científica com a historiográfica. A sinergia das duas posições, mais diferentes do que à primeira vista parece, radica ideologicamente no evolucionismo e no positivismo dominantes    no escol intelectual português do seu tempo, e, formativamente, na lição dos seus mestres da então Escola Médico-Cirúrgica do Porto, designadamente Aires de Gouveia, José Carlos Lopes e Pedro Dias. Ele o declara na “Carta ao Prof. Maximiano Lemos” com que prologa os “Comentos à vida, obra e época de Amato Lusitano”, recordando que no “obliterado torreão do Hospital de Santo António viçava uma verdadeira escola historiográfica da medicina portuguesa”, de cuja “paternidade espiritual, honrando a filiação”, nasceu “a geratriz” do “ciclo de trabalhos” de Maximiano Lemos, o insigne historiador da medicina em Portugal. Teria sido, pois, durante a escolaridade que se constituiu o sentido historizante de Ricardo Jorge, o qual se desenvolveu com o exemplo admirável de Maximiano Lemos, seu condiscípulo, colega e amigo, e se fortaleceu com a lição das próprias reflexões e dos anelos da constituição de uma ciência com amplas raízes nacionais, no passado e no presente.

Coerentemente com a sua formação e com o pendor do seu espírito, os estudos históricos de Ricardo Jorge versaram predominantemente a indagação e o exame de assuntos científicos e literários. Pela matéria, conjugam, em regra, a temática com a biografia, conferindo particular importância aos factos singulares, e pela forma mentis são estudos e não ensaios, isto é, monografias de objeto mais ou menos preciso e delimitado, nas quais a mente é conduzida pelas determinações concretas da realidade em causa e não pelo atrativo do discurso pessoal e original.

De acordo com a metodologia da sua formação científica, que a assimilação da atitude mental positivista robusteceu, Ricardo Jorge considerou, e bem, que o avanço dos conhecimentos exatos, que são os conhecimentos que importa estabelecer, coordenar e aplicar, se não adquirem nem constituem a partir de abstrações e de generalidades e que as generalizações consistentes devem ser o remate e não o alicerce das explicações congruentes e cabais.

A procura de fontes de primeira água e a recolha de dados e de materiais apresentavam-se, consequentemente, não somente como subsídios, porque chegaram a constituir ao tempo objetivo quase único, como se verificou na ingente e abnegada atividade de Sousa Viterbo, cujo espólio prestantíssimo está exigindo a reedição ordenada. Decénios depois, por influência de novas correntes epistemológicas e da sociologia cultural, a historiografia alargou-se com a temática dos problemas, com a constituição e evolução dos temas e com a discriminação e caracterização das estruturas, mas na mocidade de Ricardo Jorge a tarefa fundamental do historiador consistia no apuramento dos factos, na pormenorização das análises e nas correlações no âmbito dos factos.

Foi este ideal historiográfico, de raiz e de sentido positivista, que nutriu a atitude mental, a temática e a metodologia dos grandes historiadores contemporâneos de Ricardo Jorge, designadamente Teófilo Braga, na história literária; Gama Barros, na da administração pública e das instituições; Leite de Vasconcelos, na arqueologia, na filologia e na etnografia; Gomes Teixeira, na das matemáticas; Maximiano Lemos, na da medicina.

Os escritos histórico-científicos de Ricardo Jorge não atingiram o volume dos destes seus contemporâneos, cujas obras configuram a cultura da época. Pelo tema, recaíram predominantemente sobre a nosografia de algumas doenças e epidemias, e sobre a vida e obra de grandes figuras, notadamente Amato Lusitano, Ribeiro Sanches, Soares de Barros e João Jacinto Magalhães. Em rigor, não alcançaram o desenvolvimento inerente à narração monográfica, mas conservam atualidade pela exatidão dos materiais, pela densidade dos juízos e pela conceção valorativa da nossa cultura. Todos valem pela segurança da informação e pela lucidez das correlações, sendo de notar que as personalidades que mais e melhor estudou pertencem às emigrações dos séculos XVI e XVIII, ambas de raiz religiosa, mas de acento diverso, e cada uma com sua repercussão intelectual própria, muito principalmente a de Setecentos.

No pensamento de Ricardo Jorge a indagação biográfica não se separou dos movimentos de ideias e, em especial, do teor das conjunturas histórico-culturais e das exigências inerentes à atividade científica. É a convicção profunda no valor próprio e autónomo da ciência que anima as suas páginas histórico-científicas, por forma que elas conjugam, a um tempo, a informação retrospetiva e a conceção normativa de que somente a ciência proporciona a explicação consistente e coerente. Daqui, o alcance das suas investigações biográficas, visto relacionar o homem com as circunstâncias em que lhe foi dado trabalhar e com o estado da ciência na conjuntura em que ele viveu.

Sem embargo da peculiaridade das diversas individualidades e das situações em que lhes foi dado trabalhar cientificamente, há como que duas constantes na historiografia cultural de Ricardo Jorge: a da autonomia da atividade científica e da intercultura de Portugal e de Espanha.

A primeira destas constantes impregna o primeiro escrito histórico--cultural de Ricardo Jorge, “Luís de Verney”, inserto nos Ensaios Científicos e Críticos, publicados em 1886. Mais polémico do que expositivo, nele toma posição, a que sempre ficou fiel, no debate sobre a introdução do pensamento moderno em Portugal. Repelindo o escolasticismo corno empecivo da atividade científica, animou-o a convicção profunda no valor autónomo da ciência e a ideia de que somente a atividade científica proporciona as explicações exatas e úteis.

A segunda constante assenta na ideia de que se não respeita a verdade histórica nem se serve a cultura com extremismos nacionalistas ou estrangeirizantes, que só viciam e deformam a compreensão esclarecida dos problemas histórico-culturais.


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