1. As ciências e a sabedoria

Foi oportuna a ideia de consignar ao quinto Congresso das Sociedades de Filosofia dos países de língua francesa o tema “As ciências e a sabedoria”. A eficiência que as técnicas do poderio científico alcançaram em todas as manifestações da atividade humana, rasgando perspetivas jamais suspeitadas, converteu em inquietude instante o sempre complexo problema do valor utilitário e do alcance moral da ciência, ou por outras palavras, a relação da situação humana com as possibilidades que a ciência pode proporcionar.

Nas épocas em que os conhecimentos científicos e as possibilidades técnicas de domínio e utilização das forças da natureza eram praticamente nulas foi coerente o filosofar que concluía pela incompatibilidade da sabedoria com a ciência e, consequentemente, exortava a consciência a refluir sobre si mesma e a tomar perante o mundo a atitude de que são paradigma algumas manifestações do estoicismo.

É hoje, porém, racionalmente justificável este ideal da relação do homem com o mundo, quando a ciência pode ser um instrumento igualmente eficaz ao serviço dos mais antagónicos ideais e volver-se diabolicamente em técnica de destruição do próprio homem e da civilização?

O tema proposto proporcionava, pois, um assunto de interesse universal, de vasta e complexa problemática, e ao mesmo tempo dava ensejo a colocar o congresso, que tinha lugar no ano comemorativo do terceiro centenário da morte de Descartes, sob o signo do filósofo que considerara a sabedoria como remate do saber e na parte final do Discurso do Método vincara a ideia de “que é possível alcançar conhecimentos que sejam muito úteis à vida, e que em vez desta filosofia especulativa que se ensina nas escolas se pode lograr uma filosofia prática pela qual, conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os demais corpos que nos rodeiam, tão distintamente como conhecemos os diversos mesteres dos nossos artífices, poderíamos empregá-las do mesmo modo em todos os usos a que são adequadas, tornando-nos assim como que senhores e donos da natureza”.

Descartes concebera esta visão prospetiva de uma nova situação humana na aurora da scienza nuova, descontando, talvez, por certa a harmonia final da ciência e da sabedora, isto é, do exato e do útil, do teórico e do prático, do ser e do dever-ser. Volvidos, porém, três séculos, a ciência, que avançou por caminhos em grande parte traçados pelo autor dos tratados científicos de que o Discurso do Método fora a propedêutica lógica e filosófica, encontra a consciência humana numa encruzilhada, em que o homem se pensa e pode proceder como “senhor e dono da natureza”, com possibilidades jamais suspeitadas, e, sob outro ponto de vista, se sente comprometido numa crise que põe em jogo a própria civilização que tornou possível a maravilha do saber científico e da capacidade técnica.

A confiança de Descartes nas consequências que as ciências exatas comportam em relação à filosofia prática em que termos e condições pode ser a confiança do homem do nosso tempo?

O congresso de Bordéus pode considerar-se como exame do instante problema, sendo principalmente sob este ponto de vista que ele nos prendeu a atenção.

Foram apresentadas 55 comunicações, que, nas Atas, se encontram distribuídas por 7 secções: Sabedoria e reflexão (I); Sabedoria e metafísica (II); Sabedoria e antropologia (III); Sabedoria e epistemologia (IV); Ciência e consciência (V); Feições da sabedoria (VI); e As doutrinas da sabedoria (VII).

Em conjunto tão variado não podiam deixar de manifestar-se pontos de vista e opiniões diferentes, o que aliás é, ou deve ser, a principal razão justificativa dos congressos filosóficos e científicos. Não faltaram mesmo algumas teses aberrantes, mas de modo geral pode dizer-se que a maioria dos congressistas explicitou a problemática subjacente à conceção cartesiana expressa no passo do Discurso acima traduzido.

Tirante as comunicações de índole histórica, de que são particularmente importantes as de Geneviève Lewis, “Sabedoria e unidade das ciências segundo Descartes”; de Antoinette Virieux-Reymond, “A ciência e a sabedoria nos estoicos” e de Armand Cuvillier, “As ciências e a sabedoria na filosofia de Malebranche”, as comunicações de índole filosófica, devido ao seu número, não podem ser consideradas isoladamente, num resumo sumário Por isso, notaremos somente as que mais diretamente se ocuparam da noção de sabedoria, das relações da ciência e da sabedoria e da sabedoria e valor, por serem os ternas imediatamente ligados à noção vulgar de sabedoria, a qual implica a capacidade de discernir no haver de conhecimentos e de pôr em prática o que é sensato, conveniente e bom.

a) Noção de sabedoria.

Dois problemas preliminares: o do juízo de sabedoria, versado por E.-Marcel Prot (“Lógica da sabedoria”), que procurou determinar a zona de validade e os equívocos que ele pode conter, e o da legitimidade da sabedoria como conceito universal, apresentado por Emilio Gouiran (“O ponto de partida da sabedoria”), em cujo parecer “não existe a sabedoria mas [homens] sages, entre os quais se descobre uma espécie de parentesco espiritual a que se põe o nome de 'sabedoria' em virtude de razões unicamente propedêuticas”.

Entre este nominalismo e a proposição de definições essenciais foram presentes comunicações que ocupam como que uma região intermédia. Tais se podem considerar as que tiveram principalmente em vista aspetos descritivos e distintivos, v.g. Daniel Christoff (“Notas sobre a experiência”) e Jean Chateau (“A sabedoria como condensação”), a estrutura consciencial (J. Paliard, “A ordem no amor”) e a relação com a “vida humana profunda, tão unificada quanto possível na conquista da verdade, do bem e da harmonia”, visto a sabedoria conotar para cada indivíduo “uma existência tão plena e nobremente humana quanto possível” (N. Balthasar, “Sabedoria e vida unitiva”).

Como era de esperar, porém, a noção e objeto da sabedoria constituíram um dos temas dominantes. Levaria longe o sumário das definições explicitadas com mais ou menos clareza e profundidade, pelo que somente indicaremos as que nos pareceram mais dignas de atenção: Joseph Moreau (“A contrafação da sabedoria”), examinou a definição délfica, adotada por Sócrates — a sabedoria é o conhecimento de si mesmo — e a contrafação que dela representa o discorrer de Critias no Cármides e a tendência contemporânea a entregar, sem reflexão “humanista e filosófica”, a solução dos problemas humanos à perícia de técnicos em ciências médicas, psicológicas, sociológicas e económicas; Luis Lavelle (“A sabedoria como ciência da vida espiritual”), considerou-a como “a consciência que tomamos do valor”, e “como uma espécie de técnica mais subtil e mais geral que se propõe dar ao homem a felicidade e não somente o poderio”; Aimé Forest (“As duas nascentes da sabedoria”), para quem “a sabedoria é a perfeição da consciência de si”; David Andréani (“Para uma definição atualmente viável da sabedoria”), que estabelecendo que “o problema prático da vida” se reporta “ao problema do comportamento do indivíduo de harmonia com o conhecimento viável que temos perante o universo viável”, concluiu que se pode definir a sabedoria dizendo “que ela é a vontade de utilizar o conhecimento viável com o fim de evitar ao homem a inquietude e o sofrimento; e que ela se confunde com o desejo de conhecer, de compreender o ser humano e de respeitar as suas necessidades essenciais”.


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