2. No centenário de Augusto Comte

Volvido um século sobre a morte de Augusto Comte (1798-1857), a sua sistematização filosófica já não desperta discípulos e incitações, mas a rememoração do seu pensamento impõe-se como ato de respeito, pelo que representa intrinsecamente na história da filosofia, pelo que possibilitou na esfera da atividade científica e na da ação ético-social e pela influência que exerceu, designadamente em Portugal.     

Depois da escolástica, com efeito, nenhuma outra teorização penetrou tão extensa e profundamente no ambiente cultural português como o positivismo, entendido como filosofia nos limites da ciência. Neste sentido geral do positivismo, sinónimo do abandono da problemática metafísica ontológica pela temática metodológica e crítica, as raízes mais remotas da fácil assimilação entre nós da mentalidade positivista mergulham na atividade científica isenta e escrupulosa, da qual foi expressão suprema Pedro Nunes, e nas campanhas pedagógicas que a partir do Verdadeiro Método de Estudar (1746), de Luís António Verney, e continuadas, principalmente, por António Ribeiro Sanches (1699-1783) e Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846), se esforçaram por situar o ensino e a reflexão filosófica no âmbito dos conhecimentos científicos, da metodologia experimental e da clarificação das ideias. Ao contrário da tradição docente das litterae humaniores, que a Contra--Reforma afervorou, orientada para a formação valorativa e para a cultura estetizante e de ostentação, ornamental e verbalista, mais atenta e zelante dos valores em que se acredita e se prezam do que dos conhecimentos que se demonstram e desenvolvem ao nível da razão, o ideal didático que Verney propugnou tendia para a formação científica e para o primado da instrução sobre a valoração. Até Silvestre Pinheiro Ferreira, cuja reflexão se orientou com autonomia na diretriz da ideologia de Destutt de Tracy, que considerou as soluções metafísicas “destinadas a nos satisfazerem e não a nos instruírem”, a renovação setecentista, que teve na reforma pombalina da universidade a máxima expressão oficial, consistiu, fundamentalmente, em opor a atitude investigadora concreta ao espírito de sistema, a metodologia experimental à especulação apriorista e dedutiva, e o conhecimento exato das ciências particulares às conceções abstratas, sem outro fundamento que não fosse a coerência dentro do sistema a que se articulavam.

Nesta luta, prolongada, insistente e pluriforme, tomaram parte adeptos mais ou menos adictos ao cartesianismo, ao atomismo, ao empirismo, ao ecletismo, ao sensualismo e à ideologia. Todos concorreram para a modificação do ambiente cultural e para a orientação dos espíritos no sentido da objetividade, porém nenhum atingiu a influência decisiva da filosofia positiva de Comte, à qual vieram somar-se o transformismo darwinista e o evolucionismo spenceriano, assim pelas ideias que introduziu como pelas críticas que suscitou, nas quais, numas e noutras, estão as raízes do pensamento português moderno.

Com o ambicioso desígnio da reforma intelectual e da reorganização social, empreendeu Comte uma grandiosa sistematização que pretendia condensar o saber constituído, superar as dificuldades e contradições da atividade explicativa e estruturar uma nova ordem social, fundada nos ensinamentos e diretrizes da “política positiva” e nos impulsos afetivos da “religião da humanidade”. Conjugaram-se, consequentemente, no seu pensamento a teorização do saber e da vida em sociedade, confluindo ambas para a reforma do ensino e da educação, que, aliás, o positivismo desentranhou nos países onde a sua influência atingiu a esfera governativa.

Adeptos do pensamento comteano da primeira época e no sentido da posição de Littré, os positivistas portugueses firmaram-se na teoria do saber, continuaram as reflexões sociológicas, imprimiram orientação pedagógica à visão positivista do mundo, trouxeram para o primeiro plano da atenção as exigências da realidade prática, e pressentiram a exigência social do equilíbrio da organização das atividades e das liberdades individuais, mas não deram entrada ao sistema de pensamentos, de sentimentos e de aspirações que culminaram na “religião da humanidade”. Liga-os a Comte, fundamentalmente, a identificação da filosofia com o ato científico, e, portanto, a recusa da problemática metafísica e a negação de um objeto autónomo da filosofia, visto a reflexão filosófica se inserir na mentalidade e no saber científico, no conjunto e em cada uma das suas manifestações. Constituiu-se, assim, o positivismo em Portugal como conceção naturalista do Mundo e da Vida, que se personificou no intelectual devotado à investigação concreta, da natureza e da história, e às aplicações práticas dos conhecimentos científicos, com intuito mais ou menos redentorista e não raro polémico. Filosoficamente, o espírito que alentou os positivistas portugueses foi o da atividade científica que não confunde o que se demonstra com o que se acredita — donde a unilateralidade da atividade indagadora, dirigida para a investigação de factos e para a respetiva interpretação nos limites da explicação racional e nos planos da imanência e do relativismo.

Com ser diferente da assimilação que a teorização comteana apresentou nalguns países, mormente da América Central e do Sul, de predominante finalidade político-social, a influência do positivismo em Portugal não assinala, de maneira alguma, uma peculiaridade relevante, dado que o ideal da teorização nos limites da ciência foi o estímulo da reflexão de Comte e é a raiz do que nela permanece vivo e fecundo.

Como sistematização, historicamente considerada, o positivismo comteano é a variável de uma atitude constante, que no passado se manifestou no materialismo helénico e romano, no nominalismo da baixa Idade Média, nas filosofias do naturalismo imanentista do século XVI, no iluminismo do século XVIII, e ao presente nutre correntes diversas, cuja expressão mais terminante é, porventura, o positivismo lógico. Bastaria a historicidade da sua expressão, senão também a das próprias raízes sociais, que mergulham na situação sequente à Revolução francesa, para anular o sentido de superação definitiva e de síntese total, objetiva e subjetiva, com que o positivismo se organizou na mente de Comte, mas à razão histórica vem juntar-se, decisivamente, a impotência intrínseca. É que o positivismo comteano é um dogmatismo sem crítica, se se não preferir o velho e consabido juízo de ele ser uma filosofia que não é suficientemente positiva nem suficientemente filosófica, por várias razões, mormente por ter desatendido à exigência vital do pensamento autenticamente filosófico, que a cada instante carece de se justificar racionalmente a si mesmo, sem ardil nem evasivas.               

Tanto basta para que o positivismo comteano seja uma filosofia do passado, que já não responde aos problemas da consciência filosófica atual, mormente em relação com o homem vivente e com o estado do saber, mas nem por isso está morto o espírito que o alentou. A filosofia não é um subproduto da ciência, mas também não é a divagação arbitrária, de fronteira flutuante entre a formulação de ideias, o deslinde de generalidades, o enlevo de intuições e o virtuosismo verbal. A filosofia, que responde à exigência cultural do homem se pensar a, si mesmo e ao que lhe é dado, constitui-se pelo esforço do pensar pensante, que não ladeia nem desfigura a realidade que pensa; é sempre uma obra pessoal de problematização e de esclarecimento e a única luz que pode guiar com acerto a mente que problematiza e esclarece é a da razão que incessantemente se confronta consigo mesma e com as exigências e resultados do espírito científico.         


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