1. São Paulo e o Brasil que se constrói

Sem violentar grandemente a complexa variedade dos factos e das circunstâncias, pode dizer-se que, no Brasil colonial, dominou a política da convergência indígena e do português numa vida comum, o que, aliás, é característica geral da colonização portuguesa, e a do estabelecimento e segurança das fronteiras geográficas; e que o Brasil independente teve por objetivos capitais a preservação da unidade territorial, a estruturação da ordem político-jurídica, a constituição de uma cultura com raízes nacionais, a dignificação da vida humana e a criação de condições económicas propícias à valorização do país e à elevação do nível de vida dos seus habitantes.

Todas estas exigências e solicitações foram servidas, quando não comandadas por paulistas; daí, a importância e o alto significado de São Paulo na história do Brasil.

Foi no campo de São Paulo que a miscigenação euro-brasílica adquiriu, desde a primeira hora, maior extensão e, sobretudo, maior alcance, pois em parte alguma das terras recém-descobertas há notícia de tão numerosa descendência mameluca como a de que foi tronco João Ramalho. O aparecimento do lendário vouzelense no planalto de Piratinánga, do qual foi o primeiro colonizador, é um mistério, mas não é mistério o êxito da convivência que logrou estabelecer com o índio nativo, a qual foi condição prévia do aldeamento missionário, fundado pelo padre Manuel da Nóbrega, nem tão pouco o alcance social do cruzamento de sangues, que está na raiz étnica da gente paulista, cosmopolita pela ascendência, como nenhuma outra do Brasil moderno.

Dezoito anos após a fundação de São Paulo, em 1562, já os portugueses, mamelucos e índios defendiam o seu paupérrimo arraial contra os tamoios, confederados e instigados por franceses. Foi esta a primeira afirmação de lealdade da gente paulista a Portugal, ao depois tão afincadamente reiterada, designadamente após a Restauração de 1640, e foi também a primeira manifestação dos sentimentos e rasgos que nutrem e confirmam a suprema expressão do génio paulista: o bandeirismo.

As entradas, monções e bandeiras assinalam, com efeito, a suprema afirmação da gente paulista durante o Brasil colonial. Empreendimentos de rasgo individual ou de determinação política, as bandeiras exigiram dotes extraordinários de arrojo, de decisão e de energia, mas não se compreendem nem explicam cabalmente sem as circunstâncias peculiares do meio. É que a vida no burgo de São Paulo foi arrastada e pobre até ao primeiro terço do século passado. O isolamento a que o condenava o difícil e perigoso caminho do mar, a 65 quilómetros da costa, que hoje se percorrem facilmente na admirável via Anchieta, e a pobreza do campo circundante, sem mimos nem produtos ricos, impuseram ao paulista como que a insularidade. Ao contrário do homem do litoral, no nordeste, que mantinha frequente contato COM a metrópole, quanto mais não fosse pela exportação do açúcar, cuja produção e riqueza estruturou a vida social nestas paragens, o paulista até à plantação dos cafezais, nos meados do século passado, não teve ao seu alcance explorações e produtos cuja exploração lhe proporcionassem um nível de vida elevado. Isolado no altiplano, na posição moral de fronteiro e de vigia, condenado a uma vida de restrições, sem o afluxo de emigrantes, o cruzamento com o sangue índio tornou-se normal e a endogamia, uma imposição das circunstâncias. Daqui etnicamente, o caboclo, e, psicologicamente, a compleição sui generis do paulista, a qual deu ser e constância ao empreendimento das “bandeiras”, geradas e sustentadas pela miragem da riqueza e cuja gesta está para o sertão e para as terras virgens do interior como as navegações dos nossos capitães dos séculos XV e XVI para o conhecimento das rotas e ancoradoiros do mar-oceano.

Pela imposição do meio físico e das circunstâncias económicas, o bandeirante nasceu da luta pelo desafogo da existência e desenvolveu-se como acontecimento humano de exigências próprias e como fenómeno coletivo de extraordinárias consequências políticas. Como homem, o bandeirante carecia de um tonus vital, de uma capacidade de decisão e de uma atitude interior que o capacitassem para dominar os escrúpulos morais, os perigos físicos ou os simples obstáculos naturais, mas isto, sendo muito, é quase nada perante as consequências do bandeirismo na ordem política, pela conquista de territórios e sua integração na unidade político-administrativa do Brasil, e na ordem moral, pela constituição de um estilo de vida e de um ideal coletivo.

Nenhum outro povo americano tem páginas análogas às da epopeia bandeirante, graças à qual se incorporaram na soberania do Brasil as terras do atual território do Estado de São Paulo, do Paraná, de Santa Catarina, do Rio Grande do Sul, de Mato Grosso, quase todo o Pará e grande parte de Minas Gerais, num total aproximado de seis milhões de quilómetros quadrados. Onde outro António Raposo Tavares que, nos meados do século XVII, vai de São Paulo ao Paraguai, ao Maranhão, ao Amazonas, à região de Quito e, no regresso, atinge Gurupá, cerca de Belém?

Este assombro de audácia e de determinação creio não ter tido ainda entre nós o público reconhecimento que merece. A sua gesta é bem o símbolo da expansão geográfica do bandeirismo e da atitude que levou o grande Euclides da Cunha a escrever “que a tradição heroica das entradas constitui o único aspeto original da história brasileira”, e Rui Barbosa, o verbo de bronze e a consciência do direito, a dizer, com não menos acerto e razão, que se “não fora o arrojo desses caçadores de homens” gente “mais ardida que os primeiros conquistadores”, e a costa do Brasil ao Sul de Paranaguá seria, hoje, espanhola, espanhóis veríamos os sertões de Mato Grosso e Goiás, outro povo ocuparia as nossas melhores zonas, respiraria os nossos ares mais benéficos, cultivaria as nossas mais desejadas terras”.

O que São Paulo fez nos séculos XVII e XVIII pela expansão geográfica do Brasil, contra as ambições de castelhanos e crioulos, vai fazê-lo, no século XIX e no atual, pela elevação da vida cívica e pelo progresso económico e social. O bandeirismo muda de direção, mas é o mesmo espírito de determinação e igual a tenacidade de ânimo E assim é que todas as grandes causas que configuram a fisionomia do Brasil contemporâneo encontraram em São Paulo o mais caloroso apoio, quando não o rasgo inicial e decisivo. Quis o destino que fosse em São Paulo, numa colina da margem do Ipiranga, que D. Pedro proclamasse a independência, e o facto coerente com a história paulista, reveste-se, não só de grande simbolismo mas também, ao que penso, de significado, pela manutenção e preservação da unidade brasileira.

Não é, porventura, legítima a conjetura de que outra seria a extensão territorial do Brasil se tivessem vingado a “Inconfidência mineira” e a Revolução pernambucana de 1817?

O sentimento do particularismo paulista é, sem dúvida, uma realidade psicossocial, mas o sentimento da brasilidade não é menos real e constante na sua gente mais responsável e representativa, ao longo dos quatrocentos anos que agora se comemoram. Daí, dentre outros testemunhos, ter sido em São Paulo que, a par do Recife, a mocidade se instruiu nas disciplinas jurídicas, em condições que não só imprimiram ao burgo paulista a fisionomia de uma cidade universitária, como deram alento às efusões românticas da Pauliceia e à preparação séria dos futuros parlamentares do Império.


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