1. [Inspiração vitalista e universalista dos temas poéticos]

Já lá vão quarenta anos que o autor deste estudo e o seu prefaciador de hoje traquinavam pela Praça Velha, onde os nossos Pais labutavam pela pão de cada dia e, podendo ser, pelo do dia seguinte; nessa quadra distante aprendemos ambos juntamente a utilizar as pernas e a desentaramelar a língua, socorrendo-nos mutuamente com tão constante ajuda que jamais se me apagou da memória a recordação das primeiras travessuras e das incipientes tagarelices.

Depois veio o apartamento, primeiro pela mudança de meus Pais para o Pinhal, após pela minha escolaridade, desenvolvida no colégio e em Coimbra. A separação de lugares interrompeu naturalmente o convívio da meninice, decorrendo mesmo muitos anos sem que nos víssemos e trocássemos palavra. Tão longo silêncio não extinguira a chama da amizade; latente e represa, aguardava apenas a aragem propícia que a espevitasse e reacendesse. O ensejo ocorreu em 1925, com a comemoração do centenário de Camilo na Figueira; o notável empreendimento, a que o espírito e o prestígio do Dr. José Calado deram vida e êxito, dissipou o véu que nos encobria, e, aproximando-nos de novo, revelou-me ao mesmo tempo qualidades insuspeitadas do meu companheiro de infância.

Surpreendeu-me, com efeito, a viveza dos seus interesses literários, e logo me cativou a seriedade com que esse autodidata, sem formação escolar e sem os ócios que a fortuna proporciona, lograra educar-se, pondo ao serviço dos interesses morais da nossa terra as horas do seu descanso e o melhor do seu espírito. Daquela comemoração camiliana foi o cronista probo, escrevendo um opúsculo, em cuja modéstia se recatavam possibilidades de voos mais altos e se adivinhava uma pujante ambição literária, que o autodidatismo tanto podia conduzir à futilidade atrevida e insignificante, como ao trabalho sério e consciencioso. À mercê de um naufrágio intelectual, tão frequente nos nossos pequenos meios provincianos, salvou-o o sentimento da admiração, sem o qual a vida interior se consome em efémeras cintilações.

Primeiro, a admiração íntima e sincera da natureza, a gravidade silenciosa da serrania e sobretudo a alacridade da luz e da cor, cujas tonalidades e cambiantes impregnam as formosas Aguarelas da Beira, talvez a sua melhor obra literária; depois, a admiração compreensiva e meditada dos criadores de beleza.

O presente estudo brotou desta admiração, isto é, da vibração, a um tempo estética e educativa, de uma obra, cuja inspiração universalista e humana não tem par na atual literatura portuguesa; se o sentimento da natureza o conduzira à interioridade, velando-a de tristeza, a admiração das criações estéticas ensinou-lhe que o mundo da beleza duradoira não é fácil e não tolera as torpezas da simulação e do disfarce. João de Barros, em cuja inspiração vitalista e universalidade dos temas poéticos um crítico subtil talvez possa rastrear alguns vestígios do nosso ambiente local, especialmente do mar, foi para o autor o mago que lhe revelou o mundo da beleza e um mestre de sinceridade. Do seu reconhecimento brotou este estudo, no qual cingindo-se predominantemente às investigações biobibliográficas, conduzidas com esmero e sagacidade, nos dá o elenco minucioso da atividade literária de João de Barros, que todos os admiradores do poeta acolherão com reconhecimento. O seu estudo, porém, é preliminar; urge completá-lo com a visão interna da obra do poeta, do crítico e do pedagogo, na sua expressão estética e na sua ressonância emotiva e vital.

Como figueirenses, rendamos graças ao autor e incitemo-lo a que não deixe passar a mãos forasteiras a pena que há de escrever novas páginas sobre o maior criador de beleza que a nossa terra viu nascer!


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