6.° - Os Analíticos

I. Na expressão analíticos (n/a— resolutiva, na Escola) compreende-se as regras, as formas e o fim da análise, entendendo-se por análise a operação intelectual que permite destacar dum princípio geral os juízos particulares que contém, isto é, o raciocínio dedutivo ou silogismo, que Aristóteles considerou como a forma mais concludente de demonstração, como o raciocínio por excelência. Apesar deste título convir a toda a obra, o certo é que desde os mais antigos comentadores e intérpretes do Organon se costuma dividir, se é que esta divisão não foi estabelecida pelo próprio Aristóteles, como opina Franck, os Analíticos em duas partes: os Primeiros Analíticos, ou Do Silogismo (n/a) — Analítica Priora, na Escola) e os Segundos Analíticos ou da Demonstração (n/a— Analítica Posteriora, na Escola).

II. Ramo criticava o título, porquanto Analuein, em grego, significa desfazer e destruir, «donde o chamar-se Analíticos a estes livros que corrompem e destroem o discernimento que a natureza concedeu ao homem».

III. Esta crítica, quando outros factos não existissem, constitui, como diz Gouveia, uma prova segura de que Ramo ignorava o grego, porquanto analuein significa «reduzir e resolver uma coisa nas suas partes»; por isso é que Aristóteles chamou Analíticos aos livros «onde ensina a formar e desfazer o raciocínio e a demonstração». Os Analíticos dividem-se, porém, naturalmente, em duas partes: os Primeiros Analíticos, consagrados ao Silogismo e os Segundos Analíticos à demonstração, porque o Silogismo é por natureza anterior à demonstração.

a) Primeiros Analíticos

I. A matéria dos Primeiros Analíticos, distribuída em dois livros, foi extensamente desenvolvida por Aristóteles, sendo uma das partes do Organon onde mais brilhantemente patenteia o seu génio criador.

O Livro I, que compreende 46 capítulos, é comummente dividido em quatro partes: 1.a) das proposições e da sua conversão; 2.a) da estrutura, figuras e modos do silogismo; 3.a) da invenção do termo médio e 4.a) da solução do silogismo, enquanto que o Livro II, mais breve, pois compreende apenas 27 capítulos, é dividido em três partes: 1.a) da eficiência do silogismo ou das propriedades do silogismo relativamente à verdade da sua conclusão; 2.a) dos vícios do silogismo e 3.a) das formas imperfeitas da argumentação e da redução ao silogismo.

1) Das proposições e da sua conversão

Na demonstração, como na expressão, as proposições são afirmativas e negativas (qualidade), gerais ou universais, particulares e indeterminadas (quantidade). Encarada, porém, sob outro ponto de vista, a proposição pode ainda ser silogística, apodítica e dialética.

A proposição é silogística quando afirma ou nega sem demonstração — correspondendo ao que Kant chama o juízo assertório (assertoriches Urtheil); apodítica, quando é uma consequência necessária de certos dados e dialética — de uso nas discussões, quando dentre os dois termos da contradição, isto é, a afirmação e a negação, se pode escolher um. (Juízo problemático, problematisch Urtheil, de Kant).

Em qualquer proposição considerada como objeto de demonstração há 3 termos (n/a— terminus): sujeito, atributo e o verbo ser (cópula) que estabelece a relação entre o sujeito e o atributo. Os termos e as proposições são os elementos do silogismo. O silogismo é perfeito ou regular (n/a), quando de certos termos se tira uma consequência necessária sem recorrer a outros, e imperfeito ou irregular(n/a), quando é necessário recorrer a outros termos além dos das premissas, para se obter uma consequência legítima. Não deve, porém, confundir-se o silogismo com a conversão das proposições (n/a), porquanto esta consiste unicamente em mudar uma proposição noutra que tenha o mesmo valor e seja formada dos mesmos termos da primeira.

As regras aristotélicas da conversão, são:

1) Uma proposição universal negativa deve ser convertida numa proposição da mesma natureza, isto é, na sua recíproca. Ex.: a proposição — nenhuma volúpia é um bem, pode converter-se nestoutra: — nenhum bem é volúpia. É a esta conversão que os lógicos chamam conversão simples;

2) Uma proposição universal afirmativa converte-se numa proposição particular da mesma qualidade. Ex.: toda a volúpia é um bem, aplicando-se a regra dará: há bens que são volúpias. Na técnica lógica conhece-se esta espécie de conversão por limitação ou por acidente;

3) Uma proposição afirmativa particular pode converter-se numa afirmativa particular (conversão simples);

4) Não há conversão possível para uma proposição particular negativa.

II. Estas regras considerava-as Ramo «uns monstros inúteis para o fim que se destinam e em dissidência com os processos e hábitos do pensamento».

III. Mas Gouveia pergunta: não são porventura estas regras ditadas pelo senso comum?

Quem é que concordando em que nenhum direito é sem razão, não veja a necessidade de admitir que nenhuma sem razão é direito?

Se isto é por assim dizer um dado imediato da inteligência, se a natureza é mãe da inteligência, quem ousará dizer que as regras da conversão não são preceitos da natureza?

Na teoria do conhecimento de Gouveia — assunto que ele não desenvolveu, como quase todos os seus contemporâneos — esta afirmação permite-nos supor que ele não discriminava, no conhecimento, o sujeito do objeto, visto que por natureza considerava os processos intelectuais.

2) Estrutura do silogismo

I. Para Aristóteles o silogismo é uma enunciação na qual certas coisas sendo formuladas, por este facto resulta necessariamente alguma coisa de diferente do que tinha sido formulado.

O silogismo é, pois, a ligação de dois termos por intermédio dum terceiro. Assim, suponhamos que se pergunta se um predicado dado (mortal) convém ou não a um sujeito dado (Sócrates).

Para resolver esta questão, procura-se um terceiro termo (homem) que mantenha com aqueles dois termos relações definidas, comparando-o sucessivamente com cada um deles; segundo as relações de conveniência ou desconveniência se concluirá afirmativa ou negativamente.

O silogismo, portanto, é composto de três termos e de três juízos, dos quais um (mortal) deve poder ser atribuído a um outro (Sócrates) na conclusão, servindo o terceiro termo (homem) para provar que estes dois termos da conclusão estão numa relação de conveniência (de sujeito para atributo).

Os termos são, pois, os elementos das proposições, sendo o mais importante o termo médio (n/a — terminus medius), isto é, o termo que simultaneamente contém um dos termos e é contido pelo outro.

Os termos que o médio une chamam-se extremos (n/a) mas destes um contém o médio — termo maior (n/a— terminus major), enquanto o outro é contido por ele — termo menor (n/a— terminus minor).

Estas definições, porém, só são rigorosas quando as premissas são afirmativas; por isso Aristóteles as define por uma forma mais geral e exata. Assim o termo maior é o termo que unicamente exerce as funções de atributo, o menor as de sujeito e o médio simultaneamente as de sujeito e atributo.

As duas proposições em que sucessivamente se une o termo médio ao termo maior e ao termo menor chamam-se premissas (n/a praemissae) e conclusão (n/a— conclusio) a proposição em que se une o termo maior ao termo menor. O termo médio, que o é verdadeiramente quando é médio no pensamento — mais geral que o menor, menos geral que o maior, e na expressão — numa situação intermediária entre os dois extremos, pode ocupar posições diversas nas premissas: daí as figuras (n/a) do silogismo que, para Aristóteles, são três:

a) Na I Figura os termos são dispostos na sua ordem natural, isto é, o termo médio é sujeito na premissa maior e atributo na premissa menor. Pode ainda definir-se esta figura dizendo que o termo menor é contido pelo médio e este pelo maior, por forma que o médio está colocado entre os dois extremos, cuja reunião produz. Todos os silogismos desta figura são perfeitos, de sorte que as suas regras constituem as regras e condições gerais de todos os silogismos.

b) Na II Figura o termo médio é atributo nas duas premissas, sendo sujeitos os dois extremos. Todos os silogismos que pertencem a esta figura são irregulares, importando sempre conclusões negativas qualquer que seja a quantidade das suas premissas.

c) Na III Figura o termo médio é duas vezes sujeito e cada um dos extremos atributo. Os silogismos desta figura, como os da anterior, são irregulares, e a possibilidade da conclusão está dependente dos atributos não serem negativos.

Definindo as três figuras, Aristóteles determina os modos de cada uma delas, isto é, a quantidade e qualidade das proposições em cada figura para que seja viável a conclusão. Assunto completamente novo, Aristóteles desenvolve-o longa e minuciosamente, sendo uma das partes do Organon em que melhor se revela o seu génio criador; por isso não expõe a matéria, como mais tarde os seus comentadores, partindo da definição e das regras do silogismo, precisamente porque procede indutivamente e por ensaios, numa riqueza de detalhes que chega à confusão.

Como temos feito para as outras partes do Organon, exporemos sinteticamente as ideias fundamentais, unicamente para melhor se compreender o valor das críticas de Ramo e da defesa de Gouveia.

Como vimos, na I Figura o termo médio é sujeito na premissa maior e atributo na menor, havendo silogismos perfeitos quando o médio afirma universalmente alguma coisa do termo menor, ou quando o termo maior afirma ou nega alguma coisa do médio.

Com efeito, no primeiro caso, o termo maior contém o médio, contendo este o menor, de sorte que se apercebe imediatamente a relação de conveniência dos extremos; no segundo caso, o termo maior não contém o médio, que contém o menor, de sorte que o menor está também excluído do maior.

Na I Figura, portanto, com proposições universais, pode construir-se dois silogismos concludentes: um afirmativo, outro negativo.

Nos silogismos em que uma das premissas é particular, a conclusão só é viável quando essa premissa for a menor. Assim, suponhamos, que a premissa maior é particular. Neste caso o médio será contido parcialmente no termo maior, e a conclusão é impossível porque, embora o médio contenha todo o menor, não podemos saber se a parte do termo médio que contém o termo menor é precisamente a parte que é contida no maior.

De sorte que neste caso para que a conclusão seja viável é necessário que a premissa maior seja universal, afirmativa ou negativa, e a menor afirmativa, embora particular. Nesta figura, pois, quando uma proposição é particular há também dois modos concludentes — um afirmativo, outro negativo.

É esta Figura a única que dá silogismos perfeitos, a única que pode resolver todas as questões possíveis, precisamente porque nas suas conclusões pode recorrer a todas as formas possíveis de proposições.

Resumindo: há quatro modos legítimos na I Figura: conclusão afirmativa universal (silogismos em BArbArA), conclusão afirmativa particular (silogismos em DArII), conclusão negativa universal (silogismos em CElArEnt) e conclusão negativa particular (silogismos em FFrIO).

Na II Figura o termo médio é duas vezes atributo, devendo a premissa maior ser universal e uma as doutras negativas. Os seus modos concludentes são também quatro: dois universais negativos (silogismos em CesArE e em CAmEstrEs) e dois particulares negativos (silogismos em FEstInO e em BArOcO).

Na III Figura, em que o médio é sujeito nas duas premissas, para que seja possível a conclusão é necessário que a premissa menor seja afirmativa.

Os seus modos concludentes são seis: três afirmativos particulares (silogismos em DArAptI, em DIsAmIs e em DAtIsI) e três negativos particulares (silogismos em FElAptOn, em BOcArdO e em FErIsOn).

Já dissemos que a II e III Figuras dão silogismos imperfeitos, de sorte que é necessário, para que as suas conclusões sejam evidentes, reportá-los à I Figura. Esta redução faz-se diretamente pela conversão e por acidente, e indiretamente, pela transposição das premissas, isto é, a maior passando a menor e vice-versa, e pela redução ao absurdo, que serve para provar que, se se não admite a conclusão discutida, se contradiz uma proposição admitida como premissa.

Aristóteles demonstra ainda que os dois modos particulares da Fig. I podem ser convertidos aos dois modos universais da mesma Fig., porque podem converter-se, pela redução ao absurdo, nos dois modos universais da Fig. II e estes por sua vez aos dois modos universais da Fig. I. De dedução em dedução, Aristóteles chega à conclusão de que os dois únicos modos subsistentes, a que podem reduzir-se todos os outros, são os dois modos universais da Fig. I: universal afirmativo, universal negativo.

Não se referindo no Organon aos silogismos hipotéticos, porque, como notam Janet et Séailles, os silogismos hipotéticos que mencionamos são silogismos concludentes em virtude duma convenção, Aristóteles, em compensação, desenvolve longamente os silogismos que podem obter-se pela combinação das proposições que exprimem o necessário, o real e o possível (silogismos modais, na Escola), o que não é um mero jogo dialético porquanto o real, o necessário e o possível são os modos do ser e a ciência deve poder determinar as relações inteligíveis que na natureza podem unir o possível, o real e o necessário.

As regras gerais do silogismo, comuns a todas as figuras e modos do silogismo, são para Aristóteles cinco:

1.a) O silogismo deve ser composto unicamente de três termos.

2.a) Em todo o silogismo deve haver uma proposição afirmativa, ou por outra forma, de duas premissas negativas nada se pode concluir.

3.a) Em todo o silogismo deve haver uma premissa universal, isto é, de duas particulares nada se pode concluir.

4.a) A conclusão universal só pode resultar de duas premissas universais: se uma das premissas é particular, particular será a conclusão.

5.a) Uma conclusão afirmativa só de proposições afirmativas se pode deduzir e quando uma das premissas é negativa, negativa será a conclusão.

II. O princípio dictum de omni et nullo, que para Aristóteles é o fundamento do silogismo porque o espírito passa do género às espécies e destas aos indivíduos, quer o silogismo seja negativo quer afirmativo, era considerado por Pedro Ramo como inútil, porque «não era mais claro ou mais evidente do que o próprio silogismo».

«Os utilíssimos conselhos de Aristóteles» «sobre os modos viciosos da conclusão quando na Fig. II a proposição ou assunção afirmam ou negam, aquela do todo, esta da parte» não passavam de quimeras, como a doutrina dos silogismos mistos não era nem vantajosa nem útil, e a distinção aristotélica dos contingentes em necessários e não necessários «um filtro encantador». Porém, Aristóteles era digno ainda de maiores censuras, designadamente por ter ensinado erradamente «que na Fig. II nada se conclui de duas proposições contingentes. Nunca cometeria um tão grave disparate se atendesse a que as enunciações são afetadas pelos modos, não se negando apenas com o modo, mas com o modo e o verbo».

III. A estas críticas, Gouveia responde longamente, repetindo quase sempre a própria doutrina de Aristóteles, embora a esclareça com exemplos minuciosos. Assim, relativamente à primeira crítica, defende o princípio dictum de omni et nullo, porquanto «há muitas pessoas que não compreendem a eficácia necessariamente conclusiva do silogismo primae figurae e não concordam enquanto se lhes não expõe isso de entrada».

É por esta forma, assaz obscura, que Gouveia o defende. Parece-nos, porém, que sem lhe atraiçoarmos o seu pensamento, podemos formular este argumento desta forma: o princípio dictum de omni et nullo é legítimo porque une os termos e proposições ao silogismo por forma a tornar clara a conclusão e compreensão do silogismo.

A segunda crítica de Ramo deriva de não querer ou não poder admitir a subtileza de Aristóteles. Gouveia reproduz a doutrina aristotélica sobre a viabilidade da conclusão quando a premissa maior (proposição) afirma ou nega e a menor (assunção) nega do todo ou da parte, — assunto que não desenvolvemos pelo seu pouco interesse —, terminando por confessar que só lhe «satisfaz algo de engenhoso, de subtil e que lhe parece pouca toda a atividade quando se trata de ensinar Cada um adota o que lhe parece melhor e há de exigir que os outros se guiem pelas suas predileções?»

Como dissemos, Ramo afirmava que os silogismos mistos nem eram vantajosos nem ofereciam nenhuma certeza.

Vejamos em primeiro lugar a utilidade. «Já muitas vezes ouvi, diz Gouveia, que importantes pontos da nossa teologia só se podiam explicar condignamente por intermédio dos silogismos mistos. Para não ir mais longe: como criou Deus o mundo, se voluntariamente ou por necessidade natural, se a vontade humana é livre e independente. Semelhantes problemas não podem ser tratados como merecem por quem ignora a estrutura destas conclusões, além de que não tem menor aplicação na filosofia grega externa, onde muitos estudos e discussões em todas as escolas incidiram sobre o movimento dos animais, o destino, a fortuna, o acaso, etc.        

«Vejamos agora a fraude que nesse capítulo possa existir. Dizes não ser certo que de duas proposições, uma necessária, outra soluta (real) se possa concluir o necessário». Se assim fosse, os burros passariam a racionais, organizando o silogismo:               

Todo o homem é necessariamente racional Tudo o que corre é homem


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Vamos corrigir esse problema