2. Limites do ensaísmo

Após a publicação do Itinerário, em 1954, que significou uma tomada de posição perante algumas das preferências e valorações que o nosso tempo propõe, reúne o Dr. Eugénio Ferreira neste novo livro, pensado com coerência e escrito com franqueza à margem de absorventes ocupações profissionais, juízos e apreciações que reafirmam o seu ideário crítico e formulam a interpretação pessoal de algumas das mais características personalidades literárias portuguesas, do romantismo aos nossos dias. São um avanço na sua jornada de leitor reflexivo, de mente aberta, exigente e desapaixonada.

Com ter o século XIX por principal marco histórico e a criação poética por tema dominante, a sua reflexão situou-se no plano do estrutural e do característico da cultura, relacionando conjugadamente os dados concretos das situações temporais com as exigências da teoria crítica.

Como expressão de situações históricas, são de notar a independência mental e a largueza de vistas com que considerou o século XIX, evocado comummente com prejuízos derivados da parcialidade política, do liberalismo burguês, das filosofias da autoridade ou das dialéticas de classe. Poucos são os que, sem paixão, procuram compreender a razão por que, após séculos de humilhações, de repressões e de opressões, se tornou possível a convivência na base do idealismo cívico, do culto das virtudes familiares, do respeito dos direitos individuais e do livre exercício das manifestações do espírito, e que as criações mais originais da inteligência e da sensibilidade não só se afirmassem sem peias temporais, senão que fossem tidas pelo poder, que por então deixou de ser guardião zelante de verdades oficiais ou oficializadas, como manifestação suprema da cultura e da vida social. Este conjunto de vigências, que possibilitou as atitudes e comportamentos que vão de Manuel Fernandes Tomás a Bernardino Machado e de Garrett a Junqueiro, como que se desarticulou, fragmentando-se em parcialidades, que se tornaram, para uns, enlevo de saudades, para outros, tema de repulsas, e para todos, afinal, alvo de recriminações mais ou menos francas.

A primeira tarefa de quem aborda o estudo do século XIX consiste, assim, em expurgar a mente de preconceitos, de limitações, de deformações e de paixões mais ou menos servis — e esta exigência da consciência intelectual cumpriu-a o Dr. Eugénio Ferreira. Foi esta isenção, sem o disfarce de apologia ou de censura, que logo me cativou na atitude mental que orientou este livro. Encontrava a diretriz que se mie afigura, a um tempo, a mais adequada, a mais justa e a mais necessária para compreender e fazer compreender o grande século, que com o de Quinhentos, mas de sentido diverso, assinala a época mais criadora da nossa história.

Não basta, porém, a atitude mental, pois é também necessário ter em conta a estrutura da expressão do pensamento.

No estado de incompreensão e de desconhecimento em que jaz a nossa realidade social e cultural novecentista, devido não só à pugnacidade política mas ainda ao preconceito, que remonta a Herculano, de que a história posterior ao século XVI não oferece perspetivas cabais de plena equanimidade, impõe-se a elucidação de temas precisos e delimitados. Objetivamente, os conhecimentos exatos não se constituem nem avançam a partir de generalidades, que no melhor dos casos devem ser o remate e nunca o alicerce, e cuja preponderância gera sempre, inevitavelmente, uma cultura verbalista e ornamental, mais apta a responder aos problemas concretos com prédicas e discursos do que com ideias precisas e consistentes. Metodologicamente, a expansão literária adequada é a do estudo monográfico e não a do ensaio. Escolher o ensaio como forma mentis e como género literário é como que anunciar o propósito de discorrer com originalidade e com intenção de fazer pensar, mas equivale também a adotar um ritmo mental que quase sempre conduz a que a opinião ágil ocupe o lugar do juízo ponderado e que o pensamento se satisfaça com a delineação do esboceto. Mais apto a patentear os dotes de quem escreve do que a esclarecer a coisa sobre que escreve, o ensaio tem atrativos que seduzem, mas tem também defeitos que o depreciam, derivados quase sempre do brilho da superficialidade e da satisfação da autolatria.

Optando pelo ensaio, o Dr. Eugénio Ferreira não podia furtar-se inteiramente aos defeitos que se me afiguram inerentes à estrutura mental e literária do ensaísmo, mas ladeou-os e como que os evitou pela penetração com que foi ao fundo dos temas, pela finura dos juízos, pela seriedade e franqueza das apreciações e pela coerência e constância dos seus pontos de vista e das suas ideias gerais.

Com serem diversos, os seus ensaios, com efeito, têm de comum a teoria crítica, por forma que sugerem uma visão compreensiva das atitudes poéticas e sociais do século XIX aos nossos dias.

Na crítica histórico-social, o ensaio sobre Oliveira Martins filia no “misticismo inerente ao idealismo historicista” as incoerências e contradições do admirável escritor. A explicação contém uma parcela de verdade, mesmo que se minimize a influência das conceções de Cournot — mas somente uma parcela, por ser intrinsecamente insuficiente para abranger a obra do mais pujante talento de autodidata do seu século e, porventura, de toda a história mental portuguesa.

O sociologismo desta explicação precisa-se e acentua-se noutros ensaios, designadamente nos de temática literária. O Dr. Eugénio Ferreira deixa na sombra os critérios que, a partir da obra escrita, incidem sobre a temática e a estilística, e os que, a partir do escritor vivente, atentam na singularidade da biografia, para se firmar nas raízes sociológicas. A fundamentação e, principalmente, a aplicação deste critério constituem notas salientes do seu livro, mas urna vez mais as objeções acodem com vigorosa insistência. É certo que a biografia sem a consideração da temática nada diz acerca do valor estético de uma obra, e que a consideração estilística, ou mesmo estética, é igualmente muda, se não tiver em conta a conformação psicológica e a experiência concreta onde se gerou a criação ou a transfiguração inerentes à obra de arte, mas estas insuficiências e limitações não justificam o exclusivismo da explicação sociológica.

Na vida concreta, sociologia, política, literatura e pensamento são interdependentes, não devendo isolar-se o homem atuante, sentiente e pensante, da sociedade em que vive nem a obra literária do meio histórico-social em que ela se gera e se produz, mas se isto é exato, não é menos exato que o estilo não é superestrutura e o valor estético mero acréscimo adjetivo. Nas obras de arte o que se admira e nos emociona não é o condicionalismo nem a pressão das estruturas e das influências sociais, mas a centelha de beleza que irradiam. Ao contrário dos produtos socializados ou em via de socialização, as obras de arte são intrinsecamente singulares e pessoais — o que aliás não exclui a contribuição que os mecanismos psicológicos e as situações sociais e histórico-sociais prestam à compreensão das criações estéticas. Uma coisa é o circunstancial onde se gerou a obra de arte, e outra o valor estético dessa obra: se o artista, como homem, radica em dado meio social e se, como escritor, sofre o enlevo de uma temática em relação com a situação cultural, como criador de beleza não se coloca perante o mundo real como continuador do que lhe é dado, sendo tanto mais original quanto mais se liberta pela imaginação e pelos sortilégios da metáfora e da ficção.


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