D. Francisco Manuel de Melo foi contemporâneo de Pascal; mas quão diversos são os seus estilos de pensamento! Um e outro crentes na eternidade da mensagem cristã, ambos com o anelo da salvação, embora os separe abissalmente o plano e as projeções das suas inquietudes religiosas; mas enquanto o lusitano abdicava perante a autoridade e derramava o sentimento triste da incapacidade da sua época e do porvir, o génio de Pascal, no admirável fragmento do prefácio do Traité du Vide, distinguindo o conhecimento histórico, baseado na autoridade, do conhecimento científico, dependente apenas do raciocínio, inculcava o sentimento prospetivo da confiança na razão e nos progressos do saber. No século de Galileu, Huyghens e Newton, e dos sistemas de Descartes, Espinosa, Leibniz, Hobbes e Locke, persistia-se em julgar as conquistas e inovações científicas por um sistema de referências anteriores e opostas à constituição da ciência nova. A conversão da inteligência à nova metódica e aos novos ideais científicos e humanos não se operara, e daí a obstinação em julgar o irredutivelmente novo com as categorias exaustas do passado. É nesta inadaptação que, se não erro, mergulham as raízes da obscura inapetência científica do nosso século XVII, da incompreensão das novidades incipientes e da chamada decadência nacional. A decadência é um juízo de valor, mais uma atribuição virtual, que um juízo objetivo, pois supõe necessariamente o estalão de um valor como termo de comparação, arbitrariamente construído com representações antropomórficas. Os estádios individuais de infância, juventude, maturidade e senectude só retoricamente podem aplicar-se às nações, porque na cadeia indissolúvel das gerações não é possível segmentar uma data ou um facto, que corresponda às quadras da vida pessoal. Se a história da decadência corno facto é cientificamente uma faina estéril, a história das ideias de decadência é urna realidade, e a maneira como vos transmito esta opinião discretamente otimista autoriza-me, Senhores, a refletir convosco sobre a morfologia e consequências da não conversão da mente setecentista ao novo estilo de pensamento. Uma rápida sondagem indica-nos que a incompreensão se desenrolou nos planos social, sentimental e intelectual.
Socialmente, traduziu-se pela inadvertência da revolução económica, a qual transformou as condições materiais de vida. “O comércio mundial e o mercado mundial inauguram no século XVI a biografia moderna do capital”, escreveu Karl Marx, e, quer aceitemos esta tese, quer a de Sombart, de que o enriquecimento da burguesia procedeu da mais-valia da propriedade urbana, verificamos em qualquer caso a inadaptação às novas condições da atividade comercial e da finança. Como é compreensível que do seio do próprio povo, que mais concorrera, na aurora dos tempos modernos, para a abertura de mercados inexplorados e para o estabelecimento de vias comerciais, se erguesse a voz de Serafim de Freitas, defendendo contra Hugo Grócio, o representante da vitalidade, a anacrónica conceção do mare clausum! Persistia-se em julgar o novo com o esquema económico do passado; em manter a hierarquia tomista dos ofícios, à cabeça dos quais se colocava o agricultor, depois o artífice e por fim o comerciante; em repudiar o capitalismo, e o seu séquito, o burguês e o proletário, não se percebendo como a lei da oferta e da procura destruía necessariamente a teoria medieval do justo preço.
A imobilidade nas condições materiais de vida foi acompanhada, ou antes precedida, da imobilidade sentimental. Os valores nobiliárquicos e a consagração social destes valores pela repartição em estados, se haviam sido no passado coerentes com a orgânica e a sensibilidade da Idade Média, eram a esta hora, depois que a Renascença descobrira e valorizara o indivíduo, um anacronismo, e sobretudo tornavam os espíritos incapazes de apreender o sentimento moderno da dignidade do trabalho. Giordano Bruno fora o filósofopoeta deste sentimento. No Spaccio delia Bestia Trionfante, manifesto da nova ideia, Bruno resgata o trabalho material e espiritual, glorificando-o como “instrumento de todas as conquistas humanas” e a vida libertadora, que conduzirá o homem a uma segunda natureza verdadeiramente moral. A apologia de Bruno, anunciando a era da burguesia, como podia comover a sensibilidade do nosso setecentista, se vivia encerrado num mundo material e moral já de si fechado, se a sua ética social degradava o mecânico e o trabalhador?
Surdo às vozes que o atraíam para uma vida económica e ética à altura dos tempos, assim também foi pusilânime perante a problemática da ciência nova. “Nur atteindre la vérité ii faut se défaire de toutes les opinions que l'on a reçues”, disse Descartes com o imperativo da razão e a autoridade da experiência pessoal, e foi esta audácia refletida que faltou ao lusitano setecentista, pertinaz na indiferença às incitações da novidade.
Novidade, acabo de dizer; mas acaso terá ela direitos? Não é o amor da novidade a raiz emotiva da instabilidade e da incerteza melancólica? Sempre que o homem atinge a região da verdade, ou, se quiserdes, das convicções, inundando de certezas a sua vida interior, sente-se transportado, pela própria convicção, a um plano superior ao tempo, hostil por natureza à mudança. Todo o homem profundamente convicto vive fora do escoamento do tempo, e a novidade, quando ela atinge as fronteiras da sua vida profunda, aparece-lhe com o semblante de um intento eversor. Mas se esta é a forma vital da convicção e das ideias enraizadas no âmago de uma vida consciente, quem não observa que as convicções e as ideias se não transmitem mecanicamente como coisas exteriores ao homem? Umas e outras carecem de permanente assimilação pessoal, e quantas vicissitudes no processo assimilador! A vida, infinitamente mais rica e complexa do que as conceções e as crenças, infatigavelmente dardeja a nossa inquietude com fins e problemas novos. Como atingir estes fins, formular e resolver estes problemas, sem mutações na vida espiritual, e por vezes na estrutura do nosso pensamento? Pode acaso existir uma vida plenamente consciente sem dúvidas e anseios, sem transformações e movimentos? — Perguntou um dia Rudolfo Eucken, e com o filósofo de Iena respondo que a vida humana carece sem dúvida de continuidade, mas carece também de descontinuidade para que possa desenvolver-se em toda a sua profundeza.
Eis-nos, Senhores, no átrio de uma primeira conclusão. E essa conclusão consiste em predicarmos afirmativamente à mentalidade setecentista a tendência intuspetiva, tão pujante na análise ascética, a posse robusta de um sistema normativo de valores e a confiança numa conceção qualitativa do universo; e negativamente, o horror da solidão intelectual, a pusilanimidade do espírito em criar a lei do seu próprio destino e uma indiferença hostil à natureza física. Como haveis notado, foi pela inércia e pelas carências que essa mentalidade se tornou anacrónica. E tornou-se anacrónica, porque se baseava no orgulho antropocentrista e porque o pensamento apenas se movia dextramente no reino das abstrações genéricas e dos valores.
A estupenda descoberta, revelada por Galileu, de que não há oposição substancial entre o céu e a terra e que o mesmo critério de verdade é aplicável a ambos, sentenciou inexoravelmente a morte das conceções antigas do universo e dos postulados, ditos evidentes, sobre que assentavam. A mente do homem que quer conhecer e explicar opera uma ofensiva premeditada contra o desordenado e o descontínuo. Sempre assim foi e será. Simplesmente, a ofensiva no século XVII foi conduzida cientificamente, sob um novo estilo de pensamento e um novo ideal de ciência — tão novos que quase sou levado a admitir, com Hõffding e Max Scheler, contra Kant, a variabilidade da razão. A ciência deixa de ser a tradição que se transmite e o universal abstrato de Aristóteles para devir o conhecimento que se adquire, e, assim como se transmuda a essência do ideal científico, transmuda-se igualmente a noção de realidade. A natureza, que sempre permanece e nos rodeia com incitante mistério, atraiu com encanto inaudito o homem moderno, o qual acima de tudo ambicionou a posse de uma ciência certa da realidade. Onde encontrá-la e como encontrada? Eis as duas perguntas que a mente então formulou com inquietude por vezes dramática, e cujas réplicas supremas foram pronunciadas por Descartes e Galileu e, se o desejais, por Francisco Bacon. Descartes procurou os fundamentos da ciência na metafísica, radicando-os nas ideias, a um tempo inatas à razão e aplicáveis às coisas. Esta posição assegurava simultaneamente a racionalidade do universo e a realidade do mundo espiritual, parque da razão procediam os princípios e as verdades que regiam um e outro. A admirável conceção cartesiana reintegrou a confiança no espírito, mas, transformando a ciência numa dedução em marcha, de tipo mecânico-racional, implicou dificuldades insuperáveis. Como passar do pensamento ao ser? Onde a prova de que a razão dita as leis da matéria? Num ritmo de pensamento diverso, Bacon, e sobretudo Galileu, aquele teorizando a prova, este provando e teorizando, pedem à experiência a confirmação decisiva da construção a priori. A priori, disse, porque é claro que assim como a história não é o documento, embora sem documentos se não possa fazer história, a ciência, e em particular a física, não é a experiência. A ciência está para além da experiência, e, por isso, o que interessou Galileu, o que interessou e interessa a todos os sábios, foi e é a integração da experiência ou do dado em certas ideias conexas com a experiência, ou mesmo independentes dela, em especial as formas matemáticas. Por assim pensar é que Galileu lançou os fundamentos da ciência nova, e pôde escrever, sem a tinta mística dos pitagóricos, que o universo é um “livro sempre aberto diante dos nossos olhos, escrito em caracteres matemáticos”. Tão formoso dizer logo nos adverte de que na ciência nova, inconciliável com a direção de espírito que exigia a ciência aristotélico-escolástica, o ideal do conhecimento científico da natureza reside no número e na medida, porque só a matemática permite, através do confronto com a experiência, precisar e decidir da verdade das construções intelectuais. Não é seguro que o geocentrismo e a oposição secular entre o mundo celestial e o mundo sublunar ruíram quando se opôs irrefutavelmente à perceção sensível e ingénua uma realidade matematicamente inteligível? A investigação da lei como expressão do encadeamento das coisas tornou-se o desideratum supremo, e a este desideratum se deve que a ciência moderna seja não só experimental, mas essencialmente métrica. Acentuou-se então, com fisionomia quase irreconhecível, o paradoxo, que Kant procurou dissipar, do número, a criação mais incorpórea, abstrata e irreal, se volver no instrumento mais seguro e de análise e verificação dos factos, e a apoteose de um novo estilo de pensamento assente no postulado da identidade das coisas no tempo e na conceção, diversamente fundamentada, de que a natureza é harmonia, e não o teatro do arbítrio. Restaurando a confiança na racionalidade do universo, e admitindo, com tormento para o filósofo, que a experiência parcial e descontínua capta a realidade e pode ser reportada a um sistema coerente e consistente, o homem afirmou uma nova relação da sua consciência com o mundo e formulou um novo ideal.