A civilização não se define apenas pela morfologia social. Esta é a sua projeção materializada. A sua essência, chamai-lhe ainda civilização, ou chamai-lhe cultura, o nome pouco importa, é constituída pelo tesouro acumulado de verdades, de valores e de tendências espirituais, e pela tensão infatigável de os preservar e enriquecer. A arte e a ciência não são o resultado de impulsos meramente biológicos. Não direi que são antivitais, mas emanando do desinteresse e do mundo das aspirações ideais, reclamam intrinsecamente atitudes não naturais, e por isso mesmo precárias e contingentes. Tempos houve, bem próximos de nós, em que se tornou lugar comum a noção do progresso contínuo e quase fatal, toda a gente traduzindo na realidade a admirável comparação de Pascal entre a humanidade e um homem que vivesse longos anos e aprendesse sempre. Hoje sabemos que esta noção é uma representação subjetiva e que nada comprova cientificamente a existência da continuidade histórica como marcha crescente para o mais completo e para o melhor. A análise dos dois conceitos — progresso e cultura —, conduziu-nos a uma distinção não apenas formal, mas ouso dizer vital para a civilização contemporânea. Essa distinção consiste em estabelecer entre a cultura e o progresso a mesma relação que existe entre a ciência pura e a ciência aplicada, quero dizer, a cultura significando a atividade intelectual desinteressada e sem limite, e o progresso, a incorporação dos resultados da cultura em técnicas. Entre a cultura e o progresso há, assim, uma relação de causa para efeito, tão íntima que se me afigura insensatez a defesa da cultura contra as consequências do progresso. Simplesmente a nossa era multitudinária, deslumbrada pelas maravilhas da técnica tende a sobrestimar o efeito em relação à causa, e é nesta inversão que residem o perigo e a insegurança da nossa civilização. A hipótese de um estado vindouro de obscurantismo coletivo não é uma hipótese vã. A humanidade já transitou por estas tenebrosas experiências, e nada nos autoriza a supor que sejam improváveis no futuro. O facto cultural, seja filosófico, científico ou artístico, é, no advento e na persistência, a coisa mais subtilmente frágil do planeta, tão frágil e delicada, que, ao contrário das coisas concretas, que nos resistem, a sua simples existência carece incessantemente de ser compreendida. Que haja eclipses no processo compreensivo ou assimilador, e o homem volver-se-á intelectual ou emocionalmente cego para o que deslumbrara os seus genitores. Por isso, com Bertrand Russell digo que se tivesse morrido na infância aquela centena de homens do século XVII, cujos nomes veneramos, não existiria o mundo hodierno. É, pois, urna ilusão de certa escola sociológica o menosprezo da inteligência para atribuir os grandes sucessos a causas impessoais, conclui o filósofo inglês, e não apenas ilusão, porque nela veja um perigo. A natureza qualitativa dos factos culturais só vive na atmosfera das grandes altitudes. O ar da planície sufoca-a e mata-a; e o perigo a que aludo, Senhores, consiste na possibilidade da mentalidade de massa, sem curiosidades ultravitais e sem vigílias, deslumbrada pelo progresso, isto é, pela técnica, rendida ao realismo sensorial, grosseiro e vagabundo, invadir a zona tenuíssima da minoria desinteressada, e, julgando a qualidade irreal pela quantidade mensurável, estancar a seiva que nutre o progresso. Se esta invasão se verificar um dia, cessará, embora passageiramente, porque a vida jamais fenece, mesmo quando involui, o ímpeto criador da cultura. As vozes mais convincentes da Europa constantemente nos estão advertindo da terrível ameaça, contra a qual, com Léon Brunschwicg, direi que a única probabilidade de defesa reside na “condição que o animal político se lembre de que ele é também um animal racional”. Cumpre-nos hoje, mais imperativamente do que nunca, a vigilância e custódia dos valores que tornaram possível a civilização, e o amparo a quem não só os conserve, mas também dilate e enriqueça. Esta é, Senhores, a missão e a obra das minorias cultamente dadivosas e infatigavelmente insatisfeitas, e agora, que, após as palavras do Senhor Presidente da Academia se considera inaugurado o Instituto de Altos Estudos, eu devo dizer-vos porque não invoquei, segundo o costume, a tradição. Deliberada e refletidamente o fiz, Senhor Presidente.
Nas instituições do tipo das academias e das universidades, a velhice é um castigo — o justo castigo de se deixarem envelhecer e corromper com as refulgentes oferendas da satisfação trivial. Não invoquei, pois, a tradição académica, e não a invoco pelo respeito que vos consagro, e porque o recurso à tradição só surge quando ela perdeu a sua força atuante. A tradição viva flui sem ser notada; desde que a solicitamos transportamo-nos do facto à ideia, da realidade à teoria, e neste trânsito se opera a morte da tradição como tradição. Eis-nos, pois, fluindo na corrente viva que naquele dia já distante do século XVIII nos trouxe a Academia das Ciências, e se toda a instituição educativa, no sentido filológico da palavra, ostenta no frontão a figura do homem ideal, que apetece modelar, ocorre a pergunta: qual é ou deve ser para nós esse homem ideal?
Vós não me haveis cometido, Senhor Presidente, o encargo de exprimir o pensamento da Academia. Vós sabeis que a nossa Companhia não se instaurou nem vive para entoar a monótona melodia de uma única verdade, mas para nos unir no amor e na inquirição de todas as verdades, tanto daquelas que o homem descobre pela incidência da razão, como das que intui e acrescenta ao outro mundo das criações da beleza e da justiça; permiti, porém, que, como voto pessoal e à guisa de conclusão, eu esboce fugazmente o meu anelo.
Se fui assaz claro, das antíteses que estabeleci desprendem-se dois tipos diversos de mentalidade e dois ideais humanos diferentes, isto é, a sabedoria e a ciência. Devemos nós, homens do século XX, eriquecidos com as experiências das gerações que nos precederam, sentindo-nos pelo pensamento contemporâneos de todas as profundas inquietudes, labutas e vivências humanas, em todas as épocas e latitudes, optar por um em detrimento do outro? Penso que não.
O homem que apenas explica cientificamente é uma determinação limitada da natureza humana, assim como o é o homem que apenas se move no reino dos valores estéticas, éticos ou religiosos. O grande problema, para nós, hoje, é um problema de integração e não de exclusão, e portanto o homem ideal será aquele que substitua a visão unilateral pela visão integral, e se situe numa atitude de compreensão e de vida tal, que realizando um e outro tipo humano, demandando com igual intensidade e fervor o conhecimento que explica e o conhecimento que salva, a ambos afinal contenha e supere. Este é o meu voto e a minha crença, e saudando a nova empresa académica eu desejo veementemente que ela realize o intento que na hora já remota da Renascença nos trouxe o Colégio das Artes e inscreva como sua divisa a máxima generosamente humana de Espinosa: “Amicorum omnia, prawipue spiritualia, debere esse communia”.