1. Pedro Nunes mestre do Cardeal-Infante D. Henrique

Com os dados atualmente conhecidos não é possível determinar com exatidão o tempo durante o qual o infante D. Henrique foi discípulo de Pedro Nunes. Como aventamos noutro local, a hipótese mais verosímil é a de ter durado de 1531 a 1533, até à chegada de Clenardo a Évora, e que as lições tinham lugar todos os dias durante uma hora.

Também não é possível ajuizar com segurança do grau de aproveitamento do infante D. Henrique. É de crer que se não tivesse dedicado ao estudo das ciências exatas com o interesse e afinco que lhes votou seu irmão o infante D. Luís e também é de crer que não tivesse ficado como D. João III pouco menos que ignorante delas.

A meio caminho do saber daquele e da ignorância ou incompreensão deste, alcançou, pelo menos, os conhecimentos suficientes para notar dificuldades e até para propor ao seu mestre genial dúvidas e problemas.

Se não há lisonja na declaração de Pedro Nunes, deve-se originariamente à curiosidade do infante D. Henrique a génese do De crepusculis, que é porventura a obra mais notável de ciência pura excogitada por uma mente portuguesa.

Escreveu o nosso insigne cosmógrafo na dedicatória deste livro a D. João III que o infante D. Henrique não aprofundou o estudo das ciências exatas por haver abraçado a vida eclesiástica. A teologia passou então a ocupar o lugar das ciências matemáticas, mas nem por isso o infante as pôs totalmente de banda, porquanto propunha diariamente ao seu mestre problemas de árdua resolução, que este se esforçava por demonstrar matematicamente. Destes problemas Pedro Nunes somente indica um, que, pelo seu dizer, parece ter sido quebra-cabeças na roda culta da corte, e cujo objeto consistia na explicação da razão da diversidade da duração dos crepúsculos nos vários climas.

Pedro Nunes não explicitou o problema com o desenvolvimento que desejaríamos e que muito ajudaria a avaliar o saber astronómico do seu discípulo. Não obstante, tendo em vista a conceção astronómica então vigente e que Pedro Nunes expôs sumariamente no De Spaera epitome e divulgou pela tradução do Tratado da Sphera, de Sacrobosco, pode conjeturar-se que o problema partiu dos seguintes dados.

Se a parte habitável da Terra está dividida em sete climas, extremados por paralelos entre Os quais a diferença dos dias máximos é de meia hora, podem os crepúsculos ter igual duração em todos eles?

Em segundo lugar, se, como se afirma, o crepúsculo começa (ou acaba) quando o Sol atinge uma posição certa e constante abaixo do horizonte, pode a duração dos crepúsculos ser simultaneamente a mesma em todos os climas?

As perguntas, com serem lógicas em face da teórica da esfera, revelam, não obstante, agudeza, pelo que, se o dizer de Pedro Nunes não é lisonjeiro, se pode afirmar que o infante D. Henrique foi indivíduo inteligente e naturalmente desejoso de ideias claras e coerentes.

Como acima dissemos, estas dúvidas suscitaram na roda ilustrada da corte a emulação da explicação satisfatória, mas no dizer de Pedro Nunes, somente se lhes respondeu com coisas já gastas por muito sabidas e desacompanhadas de demonstração matemática. A explicação exata pertence ao nosso insigne cosmógrafo e assinala um dos mais altos títulos de glória científica do autor do De crepusculis universalmente reconhecida, e de que ele, aliás, teve plena consciência, como sábio que ao mesmo tempo investigava o não-sabido e se não poupava a esforços para estar ao corrente do saber coetâneo, designadamente, no que toca à astronomia, em relação aos trabalhos da escola de Nuremberga, e no que toca à álgebra, em relação aos descobrimentos dos algebristas italianos.

Por isso pôde escrever com autoridade, na dedicatória do De crepusculis, que descobrira coisas que ninguém até então havia dito e não mereceriam crédito se não fossem demonstradas, e estas coisas por ele descobertas firmavam-se na demonstração da razão de ser da variabilidade dos crepúsculos, no cálculo da duração do crepúsculo para dado lugar da Terra e dada posição do Sol e, como coroa de glória, na determinação do crepúsculo mínimo num dado lugar da Terra.

Todos estes descobrimentos de ciência pura e desinteressada, jamais entrevistos na teórica da esfera e que a história da ciência regista, a par da loxodromia, como os rasgos mais altos do génio criador de Pedro Nunes, aparecem-nos, assim, ligados à curiosidade científica do infante D. Henrique.

Discípulo arguto e colaborador inconsciente da nossa maior glória científica, tal se apresenta, pois, o futuro cardeal-rei nas suas relações com Pedro Nunes. Duas outras feições cumpre ainda considerar: a de confidente científico e a de mecenas. A primeira era, pelo menos, suposta; a segunda, constitui a novidade das presentes páginas. Consideremo-las separadamente.

Na dedicatória ao cardeal-infante D. Henrique do Libro de Algebra en Aritmética y Geometria, saído a público em Antuérpia em 1567, declara Pedro Nunes que “Esta obra ha perto de XXX armas que foy per my composta, mas porque despois fuy ocupado em estudo de cosas muy differentes, e de mera especulação, posto que algumas vezes a reuisse, e conferisse com o que outros despois escreverão, a deixey de publicar ategora, que debaxo do nome e tutela de V. A. a mando fora. E primeiramente a escrevy em nossa lingoa Portuguesa, e assi a vio V. A. mas despois considerando que ho bem quanto mais commum e universal, tanto he mais excellente, e porque a lingoa Castelhana he mais commum em toda Espanha que a nossa, por esta causa a quis trasladar em lingoa Castelhana, para nella se aver de imprimir, porque nam careça dela aquela nação tanto nossa vizinha, com a qual tanto comunicamos, e tanta amizade temos”.

A primeira inferência que deste passo se tira diz respeito à cronologia do Libro de Algebra: sendo a dedicatória datada de 1564 e declarando Pedro Nunes que “esta obra ha perto de XXX annos que foy per my composta”, segue-se que o manuscrito original, que serviu de base a futuras revisões e acrescentamentos, estava terminado em 1534 e que a redação se fez pelos anos (1531-1533) durante os quais Pedro Nunes ensinou as artes real es ao infante D. Henrique.

Isto estabelecido, surge a pergunta: como é que o infante viu o manuscrito do Libro de Algebra?

Duas hipóteses se nos apresentam, fáceis de discriminar e difíceis de aclarar e de optar.

O infante viu o manuscrito como discípulo, o que importaria porventura, dizer-se que foi no manuscrito do Libro de Algebra que aprendeu os Elementos de Aritmética, cuja matéria, com os Elementos de Geometria, constituiu a primeira das artes reales que Pedro Nunes diz ter-lhe ensinado, como acima referimos.

O infante viu o manuscrito corno confidente da atividade científica do seu mestre, o que importaria, porventura, dizer-se que já havia deixado de ser seu discípulo, para poder dedicar-se mais profundamente ao estudo da teologia e das línguas sábias com Nicolau Clenardo, sem aliás perder de todo o contato com as matérias científicas, quanto mais não fosse pela conversação, como Pedro Nunes também declaradamente informa.

A primeira destas hipóteses parece encontrar corroboração na elementaridade da parte primeira do Libro de Algebra e na respetiva feição didática; no entanto, o facto de Pedro Nunes empregar o verbo ver e não outro mais concorde com a índole desta hipótese, ou por outras palavras, com a relação de mestre para discípulo, leva-nos a admitir como mais verosímil a segunda hipótese, e consequentemente a inferir que Pedro Nunes mostrou ou deu a ver o manuscrito do Libro de Álgebra, cujo texto primitivo acabara de concluir, ao ex-discípulo, para que este tivesse conhecimento de mais esta manifestação da sua atividade científica.


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