2. Sobre a origem do nónio

Como é sabido, Pedro Nunes ocupa-se na proposição III (parte II) do De crepusculis, publicado pela primeira vez em 1542, da maneira prática de avaliar frações de grau num astrolábio, e também não é ignorado que esta avaliação está na base do instrumento designado comummente entre nós pelo nome alatinado do insigne lente coimbrão, nónio, e em França depois dos meados do século XVII, de vernier.               

A realização atual do engenhoso artifício é o termo de uma laboriosa evolução, na qual, efetivamente, se pode falar de um esforço progressivo no sentido do maior rigor, simplicidade e comodidade, aliás os grandes e constantes fitos da atividade científica. O nónio tem, assim, a sua história, subtil e complexa, na qual se levantam delicados problemas de originalidade e de influência; nas páginas que se seguem, porém, desejamos apenas surpreender a origem do raciocínio de Pedro Nunes, que indiscutivelmente marca o início de um movimento de reflexão, de generalização e de simplicidade que conduziu ao instrumento atual.        

No cap. VI (“De instrumentis quibus astrorum altitudines et distantiw capiuntur”) do De regulis et instrumentis ad uarias rerum tam maritimarum quam et caelestium apparentias deprehendendas ex Mathematicis disciplinis, Pedro Nunes declara nos seguintes termos que a ideia lhe foi sugerida por um passo de Cláudio Ptolomeu:

“Vulgatum instrumentum quadrantis quo nautw utuntur aptissimum est ad altitudines solis et aliorum astrorum capiendas, sed pro filo cum perpendiculo, ponatur regula cum pondere sibi adiuncto in altero extremo, tali artificio, ut ea facies quw,ad centrum instrumenti dirigitur, recta semper maneat supra planum horizontis. Subsultat enim filum, et detinetur interdum in eodem loco, etiam si obseruator ipsum quadrantem conuoluat. Atque ea de causa inertm reperiuntur altitudines quw quadrantibus capiuntur. Accidit tamen aliquando instrumentum recte fabricatum esse, et astra diligenter obseruata, sed deprehensas altitudines nondum exatas esse. Negue id oh aliam causam, nisi quia propter instrumenti paruitatem, non possunt eius partes ulterius in minutias partiri, adeo ut ultra graduum integram numeram, quantum altitudinis accrescat, wstimare non possis. Iuuabit igitur intra instrumenti ambitum in ipsius area, quadraginta quatuor circulos super eodem centro describere. Exterioris quadrans in 90. aequales partes secetur. Ei propinquior in 89. et qui hunc sequitur in 88. et ita deinceps suo ordine, quemadmodum in libro Crepusculorum docuimus.

“Ita enim existimo Claudium Ptolemwum fecisse. Nam si maximam Solis declinationem idcirco (ait) reperisse partium 23. minu 51. se. 20. quia ea proportio inuenta fuisset totius circuli ad arcum inter tropicos, quam 83. habent,ad 11. Constat igitur aliquem quadrantem intra ambitum instrumenti descriptum, in ipsas 83. wquales partes distributum fuisse, quarum arcus inter tropicos 44. continebat. Negue enim tanta fuit illius instrumenti quo Ptolemwus utebatur magnitudo, ut in eo prima atque secunda minuta notari possent.”

Temos, assim, como dado inicial, de partir do Almajesto (Liv. I, cap. XII) para surpreender a raiz da invenção do nónio; por isso reproduzimos em fac-símile as páginas respetivas das traduções de Gerardo de Cremona e de Jorge de Trebizonda, únicas de que Pedro Nunes podia dispor ao tempo da redação do De crepusculis e, tipograficamente, o resumo de Regiomontano no Epy toma in Almagestum Ptolomei, impresso originariamente em 1496, em Veneza, e que utilizamos na reedição: Ptolemxi Magnam Compositionem. quam Almagestum vocant. libri tredecim, conscripti a Ioanne Regiomontano mathematico clarissimo. In quibus uni uersa doctrina de caelestibus motibus, magnitudinibus, eclipsibus etc. in Epitoma redacta, proponitur, Nuremberga, 1550:            

“Lib. I.   Propositio XVII

Distantiam duorum tropicorum instrumenti

artificio deprehendere.

Dispones quartam circuli partem super lineam meridiei, et superficiem planam horizontis orthogonalem, qu sit a. b. super centro c. ita ut c. a. sit in superficie horizontis atque circuli meridiani. b. c. uero sit pars axis transeuntis per zenith nostrum et nadir eius. Hinc aptabis regulam c. d. qu uoluatur super c. centro, habentem duas pinulas cum foraminibus wqualiter a linea recta c. d. remotis, obseruabisque circa solstitium hiemale in meridíe, radio Solis ambo foramina pinularum penetrante, quam minimam altitudinem meridianam Solis ao tempore inueneris in 90. partibus arcus, a. b. stique illa arcus a. e. qum erit altitudo tropici hiemalis.

Similiter fades circa solstitium aestivale, ut maximam tune altitudinem Solis meridianam cognoscas,   

et sit arcus a. f. quae erit altitudo tropici aestivalls. Arcus itaque e. f. fiet distantia duorum tropicorum quaesita. Hanc Ptolernazus reperit 47. graduum. 42. minoturum. 40. secundorum. Invenit enim proportionem eius ad totum circulum, sicut 11. ad 83. Postea uero minorem inuenerunt. Nos autem inuenimus arcum a. f. 65. graduum. 6. minutorum et arcum a. e. 18. graduum. 10 minotorum.

Ideoque nunc distantia tropicorum est. 46. grad. 56. mi. Ergo declinatio Solis maxima nastro teanpore est 23. gr. 28. minu.”.

Este capítulo do Almajesto suscita vários problemas, designadamente o da exatidão da medida do arco de meridiano compreendido entre os trópicos e consequente determinação da obliquidade da eclíptica, e o da reconstituição do instrumento empregado nas observações. E manifesta a correlação destes dois problemas, especialmente a do segundo, pela subordinação da técnica à teoria, mas tanto um como outro podiam ser objeto de consideração autónoma. Assim, Albaténio, corno é sabido, fez no De motu stellarum o cálculo da obliquidade da eclíptica (23° 35') de maneira tão minuciosa, “telle qu'on n'en trouve aucune dans Ptolémée, ni dans aucun auteur ancien dont les ouvrages nous soient parvenus”, utilizando a “alhidada longissima”, nome sob o qual a crítica vê o “triquetrum” ou “regulm parallacticm” descrito por Ptolomeu noutro lugar do Almajesto (V, 12) — isto é, refez o cálculo de Ptolomeu sem se deter ou preocupar com a reconstituição do instrumento que lhe subministrara os dados respetivos.

Pedro Nunes procedeu diversamente.

Quase toda a sua obra, mas especialmente o De arte atque ratione nauigandi, mostra claramente que os instrumentos de observação e de precisão constituíram um dos grandes temas da reflexão do nosso cosmógrafo, mas neste caso concreto é legítimo pensar que o movera  ainda um outro impulso intelectual, a que por vezes se entregou com sagaz penetração: a crítica textual. É que, como sábio que ao mesmo            tempo cultiva a erudição, o que aliás foi estilo mental do seu século, ligado por várias raízes ao pensamento e à letra dos antigos, comprazia-se em corrigir e interpretar certos passos de escritores greco-latinos em função dos dados científicos que eles pressupunham ou implicavam, como, por exemplo, se verifica no De crepusculis relativamente a certas afirmações de Plínio na História Natural, ou em os esclarecer, dissipando-lhes obscuridades intrínsecas ou de comentadores, como se vê noutros passos das suas obras, designadamente no De erratis Orontii Finaei em relação à determinação do valor de π feita por Arquimedes. 


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Vamos corrigir esse problema