Nesta ordem de ideias, colocado perante um texto obscuríssimo, que Albaténio ladeara, Gebre suprira e Regiomontano interpretara graficamente, de maneira deficientíssima como se vê pelos desenhos acima reproduzidos, procurou reconstituir o instrumento que Ptolomeu empregara, partindo dos próprios dados que este fornecia no seu famoso livro.
Fundamentalmente, eram três: a informação de que o instrumento estava dividido em 360 graus e cada grau no número possível de partes —”in quot minuta possibile fuerit”, diz a tradução de Gerardo de Cremona; a afirmação de que o arco de meridiano compreendido entre os trópicos estava para o círculo como 11 para 83, e a avaliação da grandeza deste arco em 47° 42' 40".
A primeira coisa que cumpria explicar era a maneira como se obtivera a fração 11/83. Pedro Nunes explicou-a, admitindo, como disse o Dr. Gomes Teixeira, “que no astrolábio empregado estava traçada uma circunferência concêntrica com aquela em que eram medidos os graus, que o seu quadrante estava dividido em 83 partes iguais e que a linha de fé da alidade do instrumento passava pela divisão 44”.
Obtida esta explicação, harmonizou Pedro Nunes os dados acima referidos imaginando que Ptolomeu empregara um astrolábio em cujo limbo, na descrição clássica de Garção Stockler, estavam descritas “44 circunferências concêntricas com a circunferência graduada, cujos quadrantes constavam de 90° cada um, e dividindo os quadrantes da mais próxima em 89 partes iguais, os da imediata em 88, os da seguinte em 87, e assim por diante até a mais vizinha do centro, que seria dividida em 46 partes iguais; uma vez que a alidade do instrumento coincidisse sensivelmente com urna divisão qualquer de qualquer destas circunferências, não havia necessidade para conhecer o número de graus, minutos e segundos a que corresponderia na circunferência exterior, se ela admitisse estas miúdas divisões, senão de uma simples regra de proporção, cujo primeiro termo fosse o número total das divisões praticadas no quadrante da circunferência, aonde se verificasse a coincidência da alidade; o segundo, o número das divisões contadas nessa circunferência desde a origem do quadrante até ao ponto da coincidência; e o terceiro, o número 90”.
Com efeito, disposto este artifício no limbo do astrolábio, se se supusesse que o traço de coincidência mais aproximada com a alidade era o 44 sobre o quarto de círculo dividido em 83 partes, mediante a proporção 83: 44: 900: x obter-se-ia o ângulo de 47° 42' 39", que era o que Ptolomeu achara para a medida do arco de meridiano compreendido entre os trópicos.
Desta forma, Pedro Nunes reconstituía o instrumento referido por Ptolomeu e explicava a maneira pela qual, mediante o seu emprego, se obtivera a medida da obliquidade da eclíptica.
Como lhe surgiu, porém, a ideia da divisão do limbo do astrolábio em círculos concêntricos?
São tão íntimas e caprichosas as nascentes da criação científica e da insinuação ou da inspiração das ideias que só conjeturalmente se podem arriscar as tentativas de explicação; em todo o caso, no problema presente, é digna de consideração a hipótese estabelecida pelo sábio professor da universidade Luciano Pereira da Silva.
Este nosso saudoso amigo, ao descrever e explicar o astrolábio da Sociedade de Geografia, notável, como ele mostrou, pela solução mecânica dada à determinação das horas desiguais, formulou a seguinte pergunta, à qual também respondeu: “Não teria sido [o] traçado das circunferências concêntricas, de divisões sucessivas em número decrescente, sugerido a Pedro Nunes por um astrolábio semelhante ao da Sociedade de Geografia, em que as curvas horárias assentavam sobre o traçado de quadrantes concêntricos também sucessivamente divididas num número decrescente de partes?”.
“A comparação”, escreve “[do quadrante menor de Tycho Brahe, construído segundo o modelo de graduação proposto por Pedro Nunes com o dito astrolábio] mostra bem como o processo gráfico de reduzir horas iguais a horas desiguais, e vice-versa, podia ter sugerido, embora para fim diferente, a disposição do nónio de Pedro Nunes, o que em nada diminui o mérito do seu invento, que ele próprio aliás supunha usado já por Ptolomeu”.
Seja ou não exata esta hipótese, ela em nada afeta a origem histórico-literária da invenção de Pedro Nunes, que aliás não curou de apurar com rigorosa exatidão se o instrumento referido neste passo do Alma jesto era ou não o astrolábio náutico que os nossos pilotos usavam, nem se ele podia ter dimensões que permitissem a divisão em graus, minutos e segundos, porque, seduzido pela clareza matemática da sua explicação, deu por pressuposto que o nónio devia ter sido o próprio instrumento de Ptolomeu. Historicamente, Pedro Nunes laborava em erro, dado que o seu pressuposto não inspirava crédito, como dissera Tycho Brahe; no entanto, o erro de reconstituição volvia-se em verdade científica, na sua essência e no seu virtual desenvolvimento, porquanto esclarecia o problema, ao qual dava a primeira solução conhecida, da avaliação das frações do grau nas medições com o astrolábio.
Brotando, assim, de um erro de crítica textual, pelo qual confundira o astrolábio náutico do seu tempo com o instrumento ptolomaico, o nónio continha — singular paradoxo da descoberta da verdade e dos caminhos da ciência! — uma ideia exata e, sobretudo, fecunda sob o ponto de vista do progresso científico, como testemunham as reflexões e correções de Jacobus Curtius de Senfftnau, embaixador da Baviera junto da Santa Sé, de Cristóvão Clávio, de Tycho Brahe, de Marin e de Vernier.