3. Defensão do Tratado da Rumação do Globo para a arte de navegar

Por informe do Dr. Giacinto Manuppella, antigo leitor de italiano na Universidade de Coimbra, tivemos em 1944 notícia de que o catálogo de manuscritos da Biblioteca Nacional de Florença referia a existência de uma obra que atribuía a Pedro Nunes.

Dado o encargo que a Academia das Ciências de Lisboa nos cometeu, associando-nos à comissão incumbida da publicação das obras do insigne cosmógrafo, e a índole da nossa colaboração nos trabalho da comissão, procurámos imediatamente obter a fotocópia do manuscrito; baldadas as tentativas que oficialmente fizemos nesse sentido, somente em Junho de 1949 nos foi possível examinar in loco o próprio manuscrito, graças ao ensejo que nos proporcionou o desempenho da missão de que nos encarregara a Comissão da Cidade Universitária de Coimbra. O tempo contado de que então dispúnhamos somente consentiu o exame sumário, que, com ser rápido e superficial, foi suficiente para nos convencer da autenticidade da obra e da indispensabilidade da respetiva fotocópia, a qual, apesar de novas dificuldades, viemos a alcançar por solícita diligência do nosso ilustre e prezado colega, Prof. Felice Bataglia, atual reitor da Universidade de Bolonha.

A presente publicação está, assim, inseparavelmente ligada ao concurso de algumas boas vontades, às quais consignamos o nosso profundo reconhecimento. Seja-nos, porém, lícito salientar a Academia das Ciências, em particular o seu presidente, o Sr. Dr. Júlio Dantas, e os membros da Comissão da Cidade Universitária, Senhores Eng. Manuel Duarte Moreira de Sá e Melo e Doutor Maximino de Morais Correia, reitor da Universidade de Coimbra.

A publicação autónoma do presente livro obedece, a um tempo, à intenção de publicamente significarmos a estas individualidades o nosso reconhecido agradecimento e de proporcionarmos aos nossos prezados confrades da comissão académica o exame cómodo de um texto cuja inserção nas Obras de Pedro Nunes talvez se não deva fazer com a fidelidade paleográfica da presente edição.      

Dispunha para o prelo esta dedicatória e as duas primeiras partes da seguinte introdução quando, em meados de Junho, um gravíssimo acidente da visão me interrompeu abruptamente todo o exercício da leitura e da escrita e me fez submeter a melindrosa operação. Decorridos quatro meses, coadjuvado por um amanuense, retomo e concluo o trabalho interrompido pela mais dura provação da minha vida e sinto a alegria de ser grato a quem me restituiu a vista e me proporciona o gozo incomparável de trabalhar com os meus olhos e com as minhas mãos: o Doutor António Manso da Cunha Vaz, lente de oftalmologia na Universidade de Coimbra, e o seu assistente, Dr. Fernando de Albergaria Pinheiro.               

Se os bens somente se dão a conhecer plenamente quando os perdemos, bendigo a longa e indecisa noite de setecentas horas, em cuja escuridão o meu espírito se preparou para ver com fervor e luz mais quente os que amo e estimo e para reconhecer com mais profundidade, coerência e doçura o poder libertador da reflexão.           

 

SOBRE AS VICISSITUDES DO MANUSCRITO

E A AUTENTICIDADE DESTA OBRA

No dia 9 de Janeiro de 1669 o príncipe herdeiro da Toscana, Cosme de Médicis (1642-1723), que reinaria (1670-1723) com o título de grão-duque Cosme III, iniciou pelo nosso país, entrando pela fronteira de Elvas, uma viagem de distração, ou talvez, mais propriamente, de libertação de desacordos conjugais.      

Fazia-se acompanhar de imponente comitiva de camaristas, secretários e funcionários, de cujos nomes hoje sobressaem o escritor Lourenço Magalotti, autor da “Relação oficial da viagem”, e o pintor Pier Maria Baldi, que desenhou com perfeição vistas e aspetos de algumas povoações.

Demorou-se em Portugal cerca de dois meses, saindo por Caminha no primeiro de Março, em direção a Tui. Salvo em Lisboa, onde estanciou de 20 de Janeiro a 17 de Fevereiro, a viagem foi feita com jornadas de curta duração, o que aliás o não impediu de alcançar uma imagem bastante aproximada da realidade e da organização administrativa. Viajou “incógnito”, o que lhe valeu alguns percalços em burgos sertanejos e em nada afetou a consideração com que foi recebido no mundo oficial, desejoso porventura de proporcionar ao futuro reinante da Toscana o conhecimento exato de Portugal, cuja independência o governo de Espanha reconhecera havia pouco, dando-se até o caso de haver coincidido a entrega da credencial do primeiro embaixador espanhol junto do nosso governo após a Restauração com a estância do príncipe em Lisboa.

Entrou, assim, em contato com os mais grados representantes da aristocracia e as mais altas figuras do funcionalismo, que o cumularam de atenções e de presentes. Uma delas foi Luís Serrão Pimentel (1613-1679), que em 1641 ocupou interinamente o cargo de cosmógrafo-mor do reino, no impedimento de António de Mariz Carneiro, passando à efetividade, ao que parece, depois de 1666, e cujo exercício acumulou com o de engenheiro-mor. Era, talvez, a mais representativa figura do Portugal científico seu contemporâneo, e quer pelos cargos, quer pelos serviços prestados durante a guerra da Restauração, quer pelos escritos de renome, compreende-se que tivesse atraído a atenção do príncipe e, principalmente, de Magalotti.

Cosme de Médicis tivera por mestre Galileu, cujo ideal científico procurou animar com a Conversazione Filoso fica, iniciada pouco depois da morte do instaurador da scienza nuova, e mais tarde, em 1657, com o apoio de seu irmão, o príncipe Leopoldo, com a fundação da Accademia del Cimento; Lourenço Magalotti (1637-1712) adquirira uma formação científica de sentido galileiano e aos vinte e dois anos secretariava a Accademia dei Cimento, da qual publicou os Saggi di naturali esperienze fatte nell'Accademia dei Cimento e descritte dal segretario delia Accademia (1666-1691), (Florença, 1667).

Extremamente devoto, a atenção do príncipe logo se dirigia para as igrejas e conventos, mas nem por isso deixou de se inteirar da realidade da nossa vida política e da nossa situação científica. O nome de Luís Serrão Pimentel não aparece nos relatos da viagem, mas temos por muitíssimo provável, senão certo, que é ele o “matemático” com quem o príncipe passou em Lisboa o serão de 10 de Fevereiro de 1669 e a quem Magalotti, que sem dúvida assistiu também ao colóquio, se refere no seguinte passo: “Tornato a casa passo la veglia con un mattematico Portoghese, che le portó a far vedere un libro assai grande contenente relazione delle cose dell'Indie con le piante di quelle fortezze fatte fare in quelle parti da un Vicerè”.

Versando a conversação sobre temas de fortificação militar, nenhum outro português estava nas condições de Luís Serrão Pimentel para se ocupar com o príncipe e com Magalotti de tais assuntos: fora o primeiro mestre da Aula de artilharia e esquadria, instituída em 13 de Maio de 1641 e substituída em 13 de Junho de 1647 pela Aula de fortificação e arquitetura militar, de que também fora o primeiro lente, delineara várias fortificações do Alentejo e é possível que ao tempo já tivesse redigido o Methodo Lusitanico de desenhar as fortificações das praças regulares e irregulares, fortes de campanha e outras obras pertencentes à Arquitetura Militar, impresso postumamente em 1680.

Quem quer que seja, porém, o “matemático português” a quem se referiu Magalotti, é fora de dúvida que entre o príncipe toscano e Luís Serrão Pimentel se estabeleceram relações de mútuo apreço e, porventura, de reconhecimento, que levaram o nosso compatriota a oferecer-lhe o manuscrito que agora damos ao prelo com a seguinte dedicatória: “Serenissimo Senhor Cosmo Terceiro, Grande Duque da Toscana este manvscripto do insigne Petro Nonio Salaciense offerece, dedica, consagra a Vossa Alteza Serenissa o Engenheiro Mor e Cosmographo Mor dos Reynos, Senhorios de Portugal. Seu humillissimo servo Luiz Serrão Pimentel”.


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Vamos corrigir esse problema