3. Defensão do Tratado da Rumação do Globo para a arte de navegar

A dedicatória ao “Serenissimo Senhor Cosmo Terceiro, Grande Duque da Toscana” em vez de a “Sua Alteza o Príncipe herdeiro” indica que a oferta foi feita depois de Cosme de Médicis ter regressado a Itália e ascendido ao trono da Toscana, em 1671. Concorda com a dedicatória a “Cosmo III de Medicis Grão Duque da Toscana” do manuscrito, ainda inédito do Extrato Ichonografico do Methodo Lusitanico, novo e facílimo, apuradíssimo para desenhar as Fortificações regulares e irregulares por novas e exatíssimas expressões. Achado por Luiz Serrão Pimentel Uliziponense, Tenente g. da Artelharia, Engenheiro e Cosmographo-mor dos reinos e Senhorios de Portugal, testemunhando as duas ofertas um apreço cuja origem e cuja significação nos escapam.

A carência de informes também não permite dizer se a oferta do manuscrito que nos ocupa foi remetida em separado de Lisboa a Cosme III ou em conjunto com outras ofertas, a despeito do que parece desvendar a afirmação de Ribeiro dos Santos de que Luís Serrão Pimentel recebeu de Cosme III “tanta mercê, que havendo-lhe este príncipe prometido um livro, que ele não tinha, lhe mandou uma seleta livraria”.

Qualquer que haja sido, porém, a época e o local do oferecimento, Cosme de Médicis incorporou o manuscrito na livraria granducal, que foi herdada por sua filha Ana Maria, última representante dos Médicis e que em 31 de Outubro de 1737, num rasgo à altura do mecenato tradicional da sua família, doou “galerias, quadros, estátuas, bibliotecas, jóias e outras coisas preciosas, como as S. S. Relíquias, os relicários e adornos da capela do palácio real, com a condição determinada de que fiquem como ornamento do Estado, para utilidade do público e para atrair a curiosidade dos forasteiros, e de que nada seja mudado ou levado para fora da capital e do estado granducal”.

É por esta razão que o manuscrito se conserva atualmente na Biblioteca Nacional de Florença, onde tem a designação de Codice palatino n.° 825.

O manuscrito está escrito em papel, com letra do século XVI; tem 26 folhas, sendo a última branca, medindo 299 x 208 mm. Entre a penúltima e a última folha encontra-se uma carta original de Mathias Pereira de Sampayo, neto de Pedro Nunes, de 1 de Setembro de 1645, sem indicação do destinatário, possivelmente Luís Serrão Pimentel. É anepígrafo; o catálogo oficial da Biblioteca florentina considera-o cópia do original com correções autógrafas de Pedro Nunes, e confere-lhe o seguinte título-resumo: Alcune dimostrazioni in difesa delia sua dottrina sulla curva lossodrometrica descritta dalle navi nelle lunghe navigazioni oblique ai meridiano o all'equatore.

Os termos da dedicatória de Luís Serrão Pimentel são uma prova da autenticidade da obra; o assunto, porém, impõe considerações próprias, assim de crítica externa como interna.              

O pouco que do manuscrito se sabe anteriormente à oferta de Luís Serrão Pimentel consta da seguinte carta de Matias Pereira de Sampaio, neto de Pedro Nunes, sem indicação de destinatário, e foi incorporada no final do manuscrito para respetiva antenticação:              

“Estando em tentugal domingo 3 deste me deraõ hua Carta de Vm. naõ me foi posiuel dar a reposta a qem ma trouxe per Estar Com ospedes. Ieronimo osorio me auizou q hia pera essa Cidade, E me dise tinha de Vm. Conhesimento a elle enuio esta pera q a remeta a Vm.       

“No particular que Vm. me Escreue naõ tenho notisia q o Dr pero Nunes meo auo Ds tenha. deixásse empressos mais liuros q os q Vm. me aponta per seo falesimento per ordem de ElRej se depositaraõ no Colegjo de S. Thaz entreges ao padre Mestre fr Luis de souto maior meo tio, dous outros Caixoifis de liuros e papeis Estes por falecimento do padre mestre mandou meo pai buscar E asim elle como eu como isto naõ era cousa de minha profisaõ dauamolos as pesoas q os pediaõ.

E natas uezes lhe dauaõ as chaues dos Caixoiris pera q fosem Escolher os q ouuesem mister. E paresame q so em húa Esphera E em hri Estrolabio pessas de prata q o infante dom Luis mandeu fazer duas pera elle E outras duas para meu auo se uenderaõ a Dom Lourenço de Almada irmaõ de Dom Andre agora ultima mente dei a dom uisente duas Canastras destes liuros E a dom Andre outros por húa troca.

E ainda aqi estam em húa arca alguris uolumes lembranca auia em Caza de hú liuro q meo auo tinha ja em limpo pera emprirnir, E de outros papeis q hia alimpando mas né deste liuro nê de outros papeis acho notisia algu Coriozo os tomaria q como em caza se fazia pouco caso disto desapareseraõ com m liuros desta siencia. agora fazendo deligencia per seruir a Vm. achei esse tratado da sua letra o qual com esta enuio a Vin. E se alguma Coiza mais ouuer de seo seruico delle fico serto Ds gr a V.

“Ardazube 1 Setemb 645 amnos — I. Mathias p.ra de Sampajo”.

Deste documento, único conhecido sobre o assunto e, consequentemente, de fundamental importância, se infere que os livros e manuscritos de Pedro Nunes foram herdados por sua filha D. Isabel, casada com João Pereira de Sampaio, que vivia em Ardazubre, no campo do Mondego, entre São Martinho de Arvore e Tentúgal, por cuja morte, ocorrida em 1621, passaram para a posse de seu filho, Matias Pereira de Sampaio. Herdeiro da caza de Ardazubre, foi este neto de Pedro Nunes que em Setembro de 1645 ofereceu o manuscrito que nos ocupa a um indivíduo que não nomeia, possivelmente Luís Serrão Pimentel, como já dissemos.

Tudo isto leva a crer que estes herdeiros de Pedro Nunes, que viveram no campo de Coimbra, assim o genro, João Pereira de Sampaio, fidalgo de Tentúgal, como o neto, Matias Pereira, que frequentou cânones de 1600 a 1604-5, sem aliás se ter formado, se ocuparam principalmente, senão exclusivamente, com a administração da sua casa agrícola, sem o mínimo de incentivos intelectuais que lhes estimulassem o apreço e o zelo da conservação do espólio literário que lhes veio ter às mãos.

Um momento houve em que pareceu ter-se pensado oficialmente na salvaguarda de tão grandes valores.

Com efeito, pouco depois da morte de Pedro Nunes, o seu espólio literário foi mandado entregar ao lente de prima de teologia, Fr. Luís de Souto Maior, que então habitava na Rua da Sofia, no Colégio de São Tomás, dos dominicanos, cujo hábito professara.

O informe consta da carta de Matias Pereira, acima reproduzida.

A ordem régia a que ela alude não obedeceu propriamente à intenção de precaver o destino do espólio do sábio, já então reputado lídima glória nacional, mas ao propósito de habilitar Fr. Luís de Souto Maior a verificar pessoalmente se Pedro Nunes consignara por escrito a sua opinião acerca da reforma do calendário.

É que três ou quatro meses antes de falecer (11-VIII-1578), Pedro Nunes havia recebido do governo o convite para se pronunciar acerca do projeto da reforma do calendário que, com base no projeto de Luigi Lilio (circa 1510-1576), a comissão nomeada (1577) por Gregório XIII elaborara nos fins de 1577 com o título Compendium novae rationis restituendi Kalendarium.

Acompanhado de um breve, fora o projeto enviado ao governo de Portugal por intermédio de monsenhor Roberto Fontana, coletor junto do legado apostólico, o cardeal-infante D. Henrique, que para Roma comunicou tê-lo recebido em 5 de Abril de 1578.

Das suas mãos passou para o governo, que por ofício do secretário de Estado Miguel de Moura o fez remeter a Pedro Nunes, com a recomendação de que não demorasse o parecer e que poderia dá-lo a conhecer a quem entendesse para também se pronunciar sobre ele.


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