Se o fundo dos livros impressos pode, assim, ser reconstituído com bastante segurança, o mesmo se não pode dizer relativamente ao número e ao estado dos seus manuscritos originais e do seu epistolário científico.
Deste, a bem dizer, não se conhece o teor nem o paradeiro de qualquer carta, embora possam conjeturar-se os nomes de alguns dos correspondentes, designadamente no estrangeiro; dos manuscritos, porém, cumpre distinguir os títulos que expressamente referiu dos que não mencionou.
Com efeito, Pedro Nunes referiu-se incidentalmente a algumas obras que destinava ao prelo, designadamente a Geometria dos triangulos spheraes, Do astrolábio, tratado demonstrativo, Do planisfério geométrico, Da proporção no V de Euclides e do Traçado das pomas para a arte de navegar ou, por mais consentâneo com certos dizeres, da presente Defensão, Tratado da rumação do globo para a arte de navegar.
Todos estes títulos são referidos a obras que esperava dar ao prelo “em breve”, distinguindo-as de outras em que trabalhava “ao tempo” (hodie, 1544), cujos títulos não indica e cujo número não é possível conjeturar. Pode admitir-se, com muita verosimilhança, que uma delas seria o comentário ao De architectura, de Vitrúvio, a que alude na dedicatória do De crepusculis a D. João III, mas não sofre dúvida que o presente inédito tem de ser incluído entre os escritos que Pedro Nunes não referiu em qualquer passo das suas obras e cuja autenticidade, sem embargo, está fundada não só nas razões já expostas como nas que vamos expor.
Da história externa do manuscrito, depreende-se, com efeito, a autenticidade do respetivo texto. Não estamos em condições de afirmar que é autógrafo, como aliás é crível, mas o texto é, sem dúvida, obra de Pedro Nunes, porque às convincentes razões extrínsecas acrescem decisivas razões intrínsecas, pela correlação íntima com o desenvolvimento de uma das conceções fundamentais e mais originais do nosso cosmógrafo.
Como é geralmente sabido, as dúvidas que Marfim Afonso de Sousa apresentou em 1533 a Pedro Nunes, no regresso da viagem do Brasil, foram ponto de partida das reflexões que levaram o nosso geómetra ao descobrimento da curva que o navio descreve navegando com o mesmo rumo, isto é, mantendo constante o ângulo da direção da proa com o meridiano verdadeiro, e a explicar e a corrigir os defeitos das cartas de marear quadradas, em uso pelos nossos navegadores.
Era então opinião assente e indisputada que a curva descrita pelo navio, quando navega com rumo constante, coincidia com o círculo máximo da esfera, e, portanto, um navio que mantivesse tal rota daria, em teoria, a volta ao mundo, regressando ao ponto de partida.
Pertence a Pedro Nunes a glória de ter mostrado o erro desta opinião, demonstrando pela primeira vez que a curva que o navio assim descreve é “uma certa maneira de linhas curvas”, a qual “não é círculo nem linha direita”, para empregar os dizeres do Tratado sobre certas dúvidas da navegação, e que ulteriormente designou pelo termo de “rumo” e rumbus.
O respeito da Antiguidade, tão característico dos sábios da Renascença, levou Pedro Nunes a reportar a discriminação a Ptolomeu; no entanto, quaisquer que hajam sido as fontes literárias, é fora de dúvida que o tratamento e desenvolvimento do assunto constitui um dos melhores títulos da glória científica de Pedro Nunes, que aliás, como é vulgar nas inovações que destroem conceções enraizadas ou alteram práticas consuetudinárias, lhe acarretou também os aborrecimentos provenientes da rotina, da incompreensão e da má vontade. Devotou-lhe um afinco e perseverança que não aplicou a nenhum outro tema, versando-o num conjunto de escritos, dos quais dois se perderam, e que cronologicamente vão das primícias à despedida da sua atividade literária com a seleção e revisão da obra que lhe perpetuaria o nome.
Primeiramente, talvez em 1534, o Tratado que ho doutor Pero nunez fez sobre certas duuidas da nauegação: dirigido a el Rey nosso senhor, inserto no Tratado da Sphera, em 1537; depois, talvez em 1536, o Tratado que ho doutor Pero nunez Cosmographo dei Rey nosso senhor fez em defensam da carta de marear: cõ o regiméto da altura. Dirigido ao muyto esclarecido: e muyto excelente Principe ho Iffante dom Luys, etc.; e por fim, o De duobus problematis circa nauigandi artem Petri Nonii Salaciensis liber unus e o Petri Nonii Salaciensis de regulis et instrumentis, ad varias rerum tam maritimarum, quam et ccelestiam apparen tias deprehendendas ex Mathematicis disciplinis, liber II, vindas a público pela primeira vez em 1566 na Petri Nonii Salaciensis Opera impressa em Basileia, na “Oficina Henriopetrina”, e reimpressos anos depois em Coimbra, em 1573, por António de Mariz com o título comum, De arte atque ratione nauigandi libri duo.
Estes, os escritos dados à estampa; mas pelo De crepusculis sabe-se que em 1544 dispunha para o prelo dois outras escritos relacionados com problemas cartográficos e da teoria da navegação, o Tratado do planisfério geométrico e o Tratado da rumação do globo para a arte de navegar, os quais nunca foram impressos e cujos manuscritas se perderam ou jazem em paradeiro desconhecido.
A sucessão destes escritos é prova evidente do interesse que Pedro Nunes aplicou ao esclarecimento do que, nas suas próprias palavras, “he a principal parte pera quem deseja saber como se ha de navegar per arte e per rezão”; começando pela observação dos defeitos e inconvenientes da rumagem retilínea das cartas quadradas então em uso (primeiro Tratado), passou depois ao estudo da “linha curva e irregular” que o navio descreve quando segue um rumo constante, isto é, vai cortando os meridianos sob o mesmo ângulo (segundo Tratado), e estudou por fim a maneira de rumar a carta e as pomas de harmonia com estas “linhas curvas e irregulares”, a que também chamou “linhas de rumo”.
O exame do texto dos tratados latinos mostra que tiveram por base os Tratados insertos no Tratado da Sphera, em 1537.
O primeiro, intitulado De duobus problematis circa nauigandi artem, é em grande parte tradução literal do Tratado sobre certas duuidas da navegação o texto original sofreu alterações e acrescentamentos, mas nem por isso o texto latino deixa de ser sua tradução, mais ou menos livre.
O segundo, pelo contrário, é mais uma refundição do que uma tradução. A sua repartição em 27 capítulos logo sugere que Pedro Nunes deu à tradução latina a configuração e a amplitude de um verdadeiro tratado; e quando se passa da construtura para a estrutura e desenvolvimento logo salta à vista que se ocupa de assuntos não versados no Tratado em defensam da carta de marear. Tais são a maior parte dos temas dos capítulos IV e seguintes e muito principalmente, pelo que toca ao objeto que nos ocupa, as considerações acerca dos instrumentos de observação astronómica, designadamente do astrolábio, no capítulo VI, e da fundamentação teórica e realização prática da rumagem das pomas, dos capítulos XXI-XXVII, que terminam a obra.
A introdução destes assuntos não significa o resultado de reflexões da última hora. Trata-se, com efeito, de temas a que se aplicou muito anteriormente e acerca dos quais anunciara em 1544 que preparara para o prelo os tratados “do astrolábio”, “do planisfério geométrico” e “da rumação do globo para a arte de navegar”. Estes manuscritos nunca foram impressos e o seu texto talvez se haja perdido irremediavelmente, porém, com o Dr. Gomes Teixeira, é legítimo admitir que as respetivas “doutrinas não se perderam” por terem sido incorporadas no De arte atque ratione nauigandi.