3. Defensão do Tratado da Rumação do Globo para a arte de navegar

Os tratados latinos, sobretudo o segundo, expõem, com efeito, o pensamento definitivo de Pedro Nunes acerca da teoria da navegação. Condensam trinta anos de estudo e de reflexões, durante os quais o pensamento do sábio não só se precisou e desenvolveu em extensão e profundidade como se opôs a práticas e opiniões inveteradas e se defendeu de críticas e de animosidades.

Pelo teor e pela fundamentação matemática são estritamente científicos, omitindo considerações biográficas e passando em claro o que nestes trinta anos concorrera piara a revisão e desenvolvimento das conceções expostas em 1537 nos tratados insertos no Tratado da Sphera.

Daí, a carência de informes autobiográficos e histórico-genéticos, fundamentais, uns, para o esclarecimento decisivo de alguns problemas de prioridade científica, entre os quais avulta o da relação entre as conceções nonianas e o globo de Mercator (1541), e prestimosos, outros, para o conhecimento particularizado do desacordo de pilotos e de cartógrafos com certas diretivas de Pedro Nunes no exercício do cargo de cosmógrafo-mor.

Como todos os grandes criadores, Pedro Nunes destruiu e construiu. A explicação exata foi o alvo da atividade do seu espírito, que jamais hesitou em dissipar o erro, viesse de quem viesse, quando ele impedia o acesso da verdade que se lhe impunha pela evidência das razões. Por isso, compendiou no De erratis Orontii Finei (1546) a refutação das audaciosas pretensões do lente de matemáticas do Colégio de França e deixou que com frequência se lhe soltassem da pena reparos e excursas críticos, principalmente no segundo dos tratados do Arte atque ratione nauigandi.

Se Pedro Nunes assim procedeu, em obediência aos ditames da sua mentalidade científica, coetâneos houve que também não hesitaram em lhe contestar as opiniões, apesar do alto apreço em que o seu talento e saber foram tidos oficialmente e no consenso geral. Os dois tratados finais sobre a carta e a arte de navegar insertos no Tratado da Sphera (1537) logo suscitaram reparos e críticas, senão animosidades. Ao dá-los a público sabia que o não “sofreriam” os práticos da navegação  nem os cartógrafos, cujas cartas e pomas tinha na conta de “mentiras escriptas cõ letra douro”, mas talvez não previsse a crítica de “teóricos”, como Diogo de Sá, que algo tardiamente deu ao prelo em Paris, em 1549, o De nauigationi libri tres, quibus Mathematice discipline explicantur, aliás com mais argúcia de “filósofo” que rigor de “matemático”.

São muito escassos os informes acerca do teor e dos fundamentos da divergência dos práticos, assim mareantes como cartógrafos. De modo geral, é de crer que em Lisboa se ouvissem os mesmos reparos e críticas que em Sevilha se ouviam na Casa da Contratación de Índias; um ponto, porém, temos por seguro e fundamental: o desacordo com as instruções para a rumagem das cartas e pomas, na parte em que elas alteravam as distâncias em uso.

Com a sua conceção das linhas de rumo, Pedro Nunes pôs em crise a carta tradicional e com ela os resultados da observação dos pilotos e o cálculo dos cartógrafos que neles se baseavam, designadamente no que respeitava às longitudes, tanto mais que da conceção tirou diretivas que mandou aplicar como cosmógrafo-mor, para cujo cargo foi nomeado em 16 de Novembro de 1529.

As fontes capitais da nossa informação atual procedem da pena do arquicosmógrafo-geral de Espanha, Alonso de Santa Cruz, e do cartógrafo português Lopo Homem.

Num parecer sobre as Molucas dirigido ao monarca castelhano (16-VI-1567), escreveu. Alonso de Santa Cruz que as cartas de marear do tempo de João de Lisboa eram exatas, mas as que se fazem em Portugal desde há trinta anos por aviso que os mestres das cartas recebem tinham “los golfos encogidos”, isto é, reduzida a longitude. Estas falsidades somente se exaravam nas cartas que se vendiam publicamente e não nas que os pilotos da carreira da Índia recebiam em Lisboa, na partida, na Casa da Índia, e este mesmo organismo recolhia no regresso da viagem. E acrescentava: “Y estando yo en Portugal el año dicho [1545] el Dr. Pero Nífflez, cosmografo de aquel reino, mando a todos los maestros de hacer cartas de marear que encogieran en ias cartas que hiciesen algunos golfos que estaban en el camino de la India principalmente el que está de Comori a Malaca habiendo muchos ailos que se ponha con los tales grados de longitud en las cartas tomando por ocasión que Don Juan de Castro que fué visorey en ia Judia en el viaje que havia hecho a,ella y a Malaca le habia hallado menor de lo que es en ias cartas estaba y por ventura debió de ser porque el dicho Don Juan vió notoriamente que por ella se dava el Maluco a V. Alteza y asi en la carta portuguesa que por orden de V. Alteza se ha traido a Sevilla hay diferencia de la distancia entre Comori y Malaca de 8° 30' de ias cartas que yo hube en Lisboa de acortamiento los 6° en dicho golfo y 2° 30' de Malaca ai Maluco”.

Alonso de Santa Cruz estava interessado em mostrar que as Molucas e as Filipinas se situavam na demarcação que em Tordesilhas fora fixada para as possessões da coroa de Espanha, mas o facto não afeta a substância do seu informe, não considerado até agora pelos biógrafos de Pedro Nunes, pois é corroborado pelo parecer de Lopo Homem. Os Apuntamentos que este cartógrafo dirigiu a D. João III sobre o “Padrão de navegar” organizado e mandado aplicar por Pedro Nunes como cosmógrafo-mor constituem, com efeito, a par de valiosa fonte de informação, um violento requisitório.      

Fundamentalmente, e como que em resumo, Lopo Homem diz que “O doctor Pero Nún-ez mandou fazer um padrão de navegar sobre y por rezão do effecto e aparencias dos euclipses do sol e da lua y se o oferece° de mostrar ai dicho rei de Portugal [D. João III], por el que do meridiano de Lisboa á India e ao meridiano de Maluco era menos distancia e longitud de graos equinociaes do que se mostrava nas cartas de navegar antigas por onde primeiro se solam de navegar, pelo qual padrão se fazem as cartas que em o Almazem do dito Senhor se hão mister para as suas armadas e navegações da India, que ha sido cosa mui perjuyzial aos contratos de Maluco, y mais pera favor do direito de Castela”.

O erro fundamental do “Padrão”, ou por outras palavras, do mapa organizado ou mandado organizar por Pedro Nunes, consistia na substituição das “verdadeiras distancias que con tantas experiencias e trabalhos de homens scientes nesta arte por tanto discurso de tempo eram assentadas e descubertas” por outras longitudes calculadas pelo método dos eclipses, até então não aplicado. Pedro Nunes pusera de lado os resultados admitidos e obtidos pelos práticos com os processos tradicionais, e de acordo com novos cálculos concluíra “que a distancia e longitud dos graos equinociaes que ha do meridiano de Lisboa ao meridiano de Chaul em as partes da India era muito menos cantidade da distancia que se mostrava nas cartas antigas”, pelo que mandara “tirar e emcurtar as distancias de todallas terras e provincias que ha daqui á India”.

Não há elementos que particularizem os erros do “Padrão”, o método seguido nas observações e se os erros procediam de observações feitas pelo próprio Pedro Nunes, ou por outrem. A referência ao método dos eclipses, indicado em 1524 pelos delegados portugueses à Junta de Badajoz, convocada para dar execução ao Tratado de Tordesilhas, não é suficientemente precisa, pois Pedro Nunes pode ter aplicado, ou aconselhado que se aplicasse, não o método dos eclipses, que foi o método que no Tratado em defensam da carta de marear diz ter sido aplicado por Ptolomeu, mas o das distâncias lunares, dadas as considerações que, mais ou menos contemporaneamente, fez no cap. XV (censura 12) do De erratis Orontii Finaei e o apreço em que teve a obra de João Werner, cujos comentários ao Livro I e ao final do Livro VII da Geografia de Ptolomeu e da Geografia de Amirácio  são fundamentais na génese da problemática científica do nosso cosmógrafo ao tempo em que preparou o Tratado da Sphera (1537).


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