A hipótese mais provável, no entanto, é a da observação de um eclipse lunar feita por D. João de Castro no Oriente e cujos resultados Pedro Nunes teria aproveitado, algo à semelhança da observação do eclipse lunar que o vice-rei D. António de Mendoza mandou fazer no México, em 1544, e o cosmógrafo espanhol Jerónimo de Chaves aproveitou para o cálculo da distância de Toledo ao México.
Um ponto, contudo, resulta claro: Pedro Nunes procedeu no cargo de cosmógrafo-mor como geógrafo matemático e não como corógrafo, para empregar a distinção de Ptolomeu no Livro I da Geografia, por ele traduzido e, a exemplo de Werner, anotado. Nenhum outro problema se impunha à arte náutica com tanta urgência como o da determinação exata da longitude, e nada mais meritório do que o esforço de Pedro Mimes no sentido de o resolver por métodos de observação astronómica, que ao tempo, aliás, tinham tanto de justificação teórica como de dificuldade prática. Para a história da ciência em Portugal, e em particular para a atividade científica de Pedro Nunes, é muito lamentável que somente se saiba que ele organizou um “Padrão de navegar” com base em longitudes calculadas pelo método dos eclipses, e se ignore inteiramente como, quando, onde e com que colaboradores o aplicou; o mais que pode avançar-se, com base no informe de Alonso de Santa Cruz, acima transcrito, é que Pedro Nunes utilizou os resultados de observações que D. João de Castro fez na índia, quando vice-rei.
A perda total de documentos particulares não depõe favoravelmente sobre a exatidão do “Padrão de navegar”. No vigor com que Lopo Homem o censura sente-se vibrar a repulsa do autor do Planisfério de 1554, “admirável monumento cartográfico” no dizer de Armando Cortesão, e o seu apego às fontes tradicionais de informação cartográfica, que ele aliás confessa ", mas é óbvio que carecia de se sentir cheio de razão e seguro com o apoio de factos incontroversos e de testemunhos indubitáveis para exarar nos Apuntamentos, dirigidos ao rei, estas graves afirmações e acusações:
“Todallas cartas que por este padrão depois se fizeram e se fazem em o Almazem são mui desvairadas de toda a verdade e sciencia de navegar, e em todas as armadas que foram à India se fizeram e acomteceram muito maos recados e más viagens em o navegar por elas e se perderam muitas naos das armadas de el rei don […….] que Deus tem, por serem mui falsas e fora de toda a certeza e verdade. O que em tanto é assi exprimentado por experiencia e polla mesma sciencia que, por alguns pilotos e navegantes serem certos e exprimentados dos ditos erros, por non emcorrerem na pena que lhes é posta de não poderem navegar por outras cartas pera salvação suas vidas e viagens e verdade e certeza de suas navegações navegam secretamente pelos regimentos e cartas e quarteirões e roteiros antigos por em elas estar a verdade, com que trazem suas naos a salvamento, e os que isto não fazem são os que se perdem.
“E por isto forçados mandam los pilotos y navegantes fazerem suas cartas e todos os,outros mais instrumentos que hão mister pera seu navegar a Castela e a atras partes muitas fora de Portugal, omde se fazem como antigamente se saiam, y no en Portugal, por y ser defendidas las verdadeiras para encolherem as distancias e derrotas y tirar-las da verdade somente por segurar Maluco, estando ele tan seguro e fazendo-se isso duvidoso: o que tudo é dar mais a entender a Castela a rezão e justiça que em as Ilhas dos Malucos diz ter”.
É possível que os Apuntamentos de Lopo Homem representem o ponto mais alto da hostilidade dos pilotos e dos cartógrafos contra a orientação e as diretivas de Pedro Nunes no exercício do cargo de cosmógrafo-mor, pois nenhum outro documento conhecido acumula tão variados argumentos, nos quais se conjugam os erros de método e de cálculo com as consequências funestas à navegação e aos interesses políticos da Coroa. Vão, sem dúvida, muito mais longe do que iam as alusões vagas do Tratado em defensam da carta de marear à crítica dos pilotos a quem se ocupava da arte de navegar sem nunca ter navegado e ao debuxo dos cartógrafos, mais cuidadosos do ornamento das cartas e das pomas que da respetiva exatidão. No exercício do cargo, Pedro Nunes procurara harmonizar, como ele próprio diz, as “regras vulgares” da arte de navegar com “termos e pontos de ciência”, e daí a repulsa dos práticos, que, como os pilotos, se “riam” das inovações que ele introduzia e mandava aplicar, e a crítica dos teóricos, atenta principalmente aos fundamentos científicos das próprias inovações.
Diogo de Sá é o crítico coetâneo de maior vulto e a bem dizer o único de quem se podem particularizar as ideias. No De nauigatione libri tres, quibus Mathematicae discipline explicantur, impresso em Paris, em 1549, “Ex offieina Reginaldi Calderii, et Claudii eius filii”, criticou algo tardiamente os dois tratados finais do Tratado da Sphera (1537), em especial o segundo, Em defensam da carta de marear, com mais “filosofia” que “matemática”.
A geometria não ocupa no De nauigatione o lugar e, sobretudo, o desenvolvimento que a crítica reclamava, mas quaisquer que sejam as deficiências de Diogo de Sá, ele não deixou de tocar na conceção fundamental e original dos dois tratados anexos ao Tratado da Sphera: a discriminação da navegação por círculos maiores (máximos) e por linhas curvas irregulares (loxodrómias) e a possibilidade da rumagem das pomas para este último modo de navegar.
Pedro Nunes não aludiu em parte alguma ao livro de Diogo de Sá, embora seja crível que atentasse numa ou noutra observação deste crítico quando preparou para o prelo, circa 1563-1564, o De arte atque ratione nauigandi. Compreende-se; o De nauigatione libri tres viera a público doze anos depois do Tratado da Sphera, e neste intervalo Pedro Nunes aprofundara no De globo delineando ad nauigandi artem a sua conceção das linhas de rumo, desenvolvendo-a e, sem dúvida, aplicando-a à rumação das pomas.
Nada se sabe deste escrito, que o De crepusculis anunciou para o prelo em 1544, como anteriormente dissemos, e que o manuscrito agora dado ao prelo diz que era dedicado ao infante D. Luís. A teoria nele exposta é de crer que tenha sido incorporada no De arte atque ratione nauigandi, como supôs o Doutor Gomes Teixeira; do texto, porém, não se conhece um só período.
Apesar de não ter sido dado ao prelo, o manuscrito tornou-se conhecido. É possível que o infante D. Luís, a quem a obra foi dedicada, o divulgasse na roda de entendidos que lhe frequentavam o paço, mas bastava a oposição de mareantes e de cartógrafos às inovações de Pedro Nunes para romper a discrição.
Do que se passou, somente se sabe, pelo exórdio da presente obra, que um “bacharel” escreveu em latim um “Tratado sobre o arrumar do globo”, com o propósito, diz Pedro Nunes, “de reprehender o que sobriso escrevi na obra que deregi a V. A. [o infante D. Luís]”.
Três coisas cumpre considerar nesta notícia: a autoria do Tratado, a sua constituição e a obra de Pedro Nunes que ele criticava.
Do autor, não há qualquer notícia que o individualize. Devia ser letrado, visto ter escrito o Tratado em latim, associando na formação, por consequência, os conhecimentos literários do trívio aos científicos do quadrívio. Pode pensar-se em Diogo de Sá, que, no prosseguimento da crítica à obra de Pedro Nunes, depois de criticar, no De nauigatione, a discriminação da navegação por círculo máximo da navegação por linhas curvas e irregulares, teria criticado no Tratado a aplicação da conceção à rumagem das pomas Diogo de Sá construiu o De nauigatione como disputa entre um “Matemático”, que é Pedro Nunes, e um “Filósofo”, que é ele próprio, pondo na boca do “Matemático” os dizeres dos Tratados anexos ao Tratado da Sphera por ele vertidos para latim. Ora os períodos finais da presente obra parecem conter uma referência a esta construtura e, portanto, a indicação velada do nome de Diogo de Sá, como mostra a transcrição: