Segundo a notícia do prefácio, Pedro Nunes escreveu este livro para responder à curiosidade do infante D. Henrique, futuro cardeal-rei, acerca da duração dos crepúsculos nos diversos climas.
A notícia é demasiado concisa; permite, no entanto, conjeturar que o infante tivesse formulado dubitativamente as seguintes objeções:
Se, como então se admitia e pode ver-se em Sacrobosco (vol. I, pp. 48-52) e no De spaera epitome (vol. I, p. 265, 11. 27-35), a parte habitável da Terra está dividida em sete climas, respetivamente extremados por paralelos entre os quais a diferença dos dias máximos é de meia hora, os crepúsculos podem ser de igual duração em todos eles? Além disto, se o crepúsculo começa (ou acaba), como dizem, quando o Sol atinge uma posição certa e constante abaixo do horizonte, é a duração dos crepúsculos simultaneamente igual em todos os climas?
As dúvidas eram naturais num estudante da teórica da esfera, desejoso de compreender com alguma clareza as vagas e obscuras afirmações de Sacrobosco no Tratado da Sphera, designadamente no parágrafo “Dos que viuem debayxo do polo arctico” (vol. I, pp. 47-48), mas a curiosidade do infante fora iludida, porque apenas se lhe respondia (diz Pedro Nunes no prefácio) com coisas já gastas por muito sabidas e desacompanhadas da respetiva demonstração.
Compreende-se. É que a resposta para ser cabal exigia o que a ciência constituída não podia dar, a saber, a demonstração da variabilidade dos crepúsculos, o cálculo da duração do crepúsculo para um dado lugar da Terra e uma dada posição do Sol, e, como suprema capacidade, a determinação do crepúsculo mínimo num dado lugar. A ciência da época não estava, com efeito, em condições de responder satisfatoriamente; o saber que a constituía, procedente na maior parte do Tratado da Esfera de Sacrobosco, corno que resumido por Pedro Nunes na introdução à Parte Primeira e do qual damos alguns testemunhos na anotação respetiva, era a um tempo escasso e deficiente. Apenas se destacava o opúsculo de Allacen, nas páginas em que expõe as causas do crepúsculo e a altura máxima dos “vapores”; por esta circunstância o publicou Pedro Nunes, arrancando-o ao esquecimento de ignorada biblioteca e de perdido códice, e, ao mesmo tempo, patenteando, por contraste, a novidade, amplitude e exatidão das suas observações e reflexões pessoais. Graças a elas, o infante D. Henrique logrou o esclarecimento preciso, pois pela primeira vez se demonstrou, segundo cremos, de entre outros pontos, por exemplo, que a duração do crepúsculo aumenta com a altura do polo e com a declinação do mesmo nome, que, para empregar a linguagem que certamente Pedro Nunes empregaria nas explicações dadas ao infante, na esfera reta, a declinações iguais de uma e outra banda do equador correspondem crepúsculos iguais, e, ainda nesta esfera, o crepúsculo é mínimo no equinócio.
O De crepusculis revela, talvez como nenhuma outra obra sua, o génio de Pedro Nunes, pela forma como cingiu cientificamente o assunto, criando-o, por assim dizer, de raiz, ao desprendê-lo da maranha de obscuridades e erros, e estabelecendo coerente e consistentemente a respetiva problemática, cujas soluções e demonstrações se constroem e encadeiam segundo a atitude mental e o método que atingiram expressão suprema e canónica com Euclides.
O valor de uma obra científica deve avaliar-se, em grande parte, pela sua difusão e pela vibração de pensamento que suscita, e este valor não pode regatear-se ao De crepusculis. Teve no seu século a consagração de três edições e o aplauso dos doutos, à cabeça dos quais cumpre colocar Tycho Brahe, e não lhe faltou a glória de ser resumido e universalizado em vinte e quatro proposições, de feição científica e didática, pelo talento e pelo prestígio do jesuíta bávaro Cristóvão Clávio (†1612), o “Euclides” da Companhia de Jesus, que parece ter sido discípulo do nosso autor na Universidade de Coimbra, na Digressio geometrica de crepusculis, integrada no In sphaeram Ioannis de Sacro Bosco commentarius.
Assim, o De crepusculis logrou a consagração inerente às explicações científicas, entrando e fluindo, muitas vezes anonimamente, no caudal dos conhecimentos exatos que constituem património da Humanidade.
Quando Pedro Nunes revia as derradeiras provas do seu livro, em 1542, limava, porventura, Nicolau Copérnico as últimas laudas do seu De reuolutionibus orbium caelestium libri sex, publicado em 1543, mas pensado e talvez escrito doze anos antes. Não sofrem paralelo as duas obras, a bem dizer contemporâneas, quer na amplitude do objeto, quer no rasgo do pensamento, quer na profundidade e vastidão da influência: o livro de Copérnico assinala uma viragem na história da ciência e na da posição do homem no universo, o de Pedro Nunes é apenas a primeira consideração científica, desenvolvida, exata e encadeadamente demonstrada, do objeto de que se ocupa.
Não obstante, compreende-se que nas tábuas da história da astronomia se inscrevam sucessivamente as duas obras como datas assinaláveis, pois se a de Copérnico marca genialmente o termo de uma conceção tenaz, a de Pedro Nunes instrui e manifesta exemplarmente o espírito científico moderno, na medida em que este se exprime e afiança, à maneira de Arquimedes, no estabelecimento preciso do objeto e na associação do cálculo à observação.
A presente edição reproduz o texto da segunda edição, de 1571 (3), visto ter sido a última feita sob a inspeção de Pedro Nunes, que nela introduziu, como já dissemos, algumas alterações ao texto da primeira edição. Nestas condições, cumpria que a atual edição apresentasse as diferenças das duas edições e fosse, na medida do possível, cómoda ao leitor, proporcionando-lhe um texto sem abreviaturas e com grafias uniformes; nesta ordem de ideias adotámos os seguintes sinais e regras:
- Os acrescentamentos da segunda edição, quando excedem uma linha, são precedidos de “e quando não a excedem, as respetivas palavras são indicadas entre < >.
- A supressão de palavras do texto da primeira edição é indicada entre [ ] e composta em caracteres menores.
- A substituição de palavras da primeira edição é apontada entre ““.
- Os desdobramentos das abreviaturas vão em caracteres itálicos.
- As letras introduzidas vão entre [ ]. Na tradução escreveu-se por extenso o nome de Euclides após a citação da proposição e livro dos Elementos, sem colchetes na maior parte dos casos, nos passos em que o texto latino não exara o nome do geómetra grego ou o cita abreviadamente.
- Uniformizou-se o emprego de maiúsculas, que no texto é irregular, relativamente às palavras que designam os trópicos, as estrelas e as constelações; e o das minúsculas, relativamente ao vocabulário técnico.
- As demais modificações do texto, designadamente a substituição de letras, são indicadas nas notas.
A tradução sai sob a autoridade da Comissão Académica, pois todos os seus membros nela colaboraram, salvo o comandante A. Fontoura da Costa, antigo lente da Escola Naval, arrebatado à nossa companhia em 7 de Dezembro de 1940, e a cuja memória nos inclinamos saudosa e gratamente, pela excelência do seu carácter e pela devoção patriótica do seu saber; concorreram, porém, especialmente e de maneira porfiada, para a sua elaboração, o signatário e o Sr. Manuel A. Peres Júnior, que velou acuradamente pela exatidão científica dos conceitos e respetiva expressão.