O texto que se apresenta cinge-se, quanto possível, ao original; não obstante, quando a literalidade poderia induzir em erro, volver-se em redundante, ou criar dificuldades ao leitor contemporâneo, designadamente pelo emprego de vocabulário obsoleto, preferiu-se a redação que, sem trair o pensamento do autor, foi considerada mais clara e acessível.
Estes casos serão justificados em nota; de modo geral, porém, deve advertir-se que a supressão ou atualização de certas palavras não afetou o pensamento de Pedro Nunes, que cremos ter sido respeitado e mantido na sua posição histórica, a um tempo supremo propósito e capital dificuldade dos trabalhos desta natureza.
Não devemos terminar estas notas preliminares sem pessoalmente agradecermos ao Sr. Dr. Duarte Leite, antigo lente de astronomia na Faculdade de Ciências do Porto, as advertências e observações com que acompanhou a revisão das provas que lhe submetemos, aos académicos Srs. F. A. Rebelo Gonçalves e Moses B. Amzalak as traduções, respetivamente, do carme de António Pinheiro e do texto hebraico de Joseph del Médigo, e ao licenciado em filologia clássica Sr. Miguel A. Pinto de Meneses, revisor-auxiliar da Comissão, a solicitude com que se desempenhou dos seus deveres, especialmente na revisão do texto latino e no rascunho da tradução.
Cumpre-nos ainda render público agradecimento ao Sr. A. Gomes Bebiano, administrador da Imprensa Nacional de Lisboa, pelas facilidades que nos concedeu, e ao Sr. Mário Marques de Brito, mestre da Escola Tipográfica desta oficina, a solícita competência com que atendeu e vigiou a marcha do presente volume das Obras.
ANOTAÇÕES AO TÍTULO
(p. 3)
O título aqui inserto reproduz o da segunda edição. O da primeira edição é diferente, como já dissemos e claramente mostram as seguintes palavras que vão em caracteres itálicos: “Item Allacen Arabis uetustissimi, de causis Crepusculorum Liber unus a Gerando Cremonensi iam ohm Latinitate donatus, nunc uero omnium primum in lucem editus”.
Esta redação estava de harmonia com a circunstância de Pedro Nunes fazer realmente a primeira edição do escrito de Allacen; cessando esta razão na segunda edição, tanto mais que, como veremos, reviu novamente a tradução de Gerardo de Cremona, impunha-se logicamente outra.
P. 3, 1. 4: Allacen] É o sábio árabe Abú Ali el-Hasan b. el-Haitam, de quem adiante nos ocuparemos. No texto, como na tradução, mantivemos a grafia Allacen, de harmonia com a tradição que remonta a Pedro Nunes, embora Ribeiro dos Santos tenha preferido Alhazen (Mem. cit.), que é a forma vulgar em castelhano, e se encontrem por vezes na literatura histórico-científica as formas Alacen e Halacen.
Servem-nos de fundamento os seguintes períodos da resposta à consulta que fizemos ao Sr. Dr. Joaquim Fernando de Abreu Figanier, lente de árabe na Faculdade de Letras de Lisboa, onde é digno sucessor do ilustre académico e grande Mestre na nossa idade, David de Melo Lopes (1867 † 1941), de respeitabilíssima memória:
“(...) A ortografia das palavras de origem árabe constitui um problema delicado. Apontam-se-lhe duas soluções:
“1.ª A de se manter a forma tradicional de grafar, com observância das regras da evolução das palavras árabes; é a adotada por espanhóis e portugueses em cujos léxicos existe um fundo importante de arabismos, entrados por via auditiva;
“2.ª A de adotar um sistema de transliteração.
“A primeira solução não satisfaz cabalmente, pois que nem sempre permite a identificação da palavra árabe (correspondência de um fonema da forma evoluída a dois ou mais fonemas árabes — v.g. [ç] < cine, çade, zai; [k] < ha (=j espanhol), kafe, qafe (enfático), etc.; inexistência na forma portuguesa de certos fonemas que se encontram na forma árabe, como por exemplo o caine, etc.). Desta maneira torna-se muitas vezes bastante trabalhosa a busca duma palavra nas enciclopédias ou dicionários estrangeiros.
“Mas este inconveniente é contrabalançado pela vantagem que resulta da facilidade na leitura da palavra.
“Esta facilidade deixa de existir, se adotarmos a solução dum sistema de transliteração. Para a maior parte dos leitores a pronúncia de termos como Alattãr e Arrahmãn não é das coisas mais fáceis. Mas, em presença das formas transliteradas, que reconstituem as correspondentes árabes, é fácil proceder a buscas em repositórios de nomes, o que representa a vantagem da transliteração.
“Que solução se deve dar, portanto, a este problema?
“Creio que as palavras de origem árabe devem grafar-se de harmonia com a tradição e dentro das regras da evolução respetiva, sem embargo de indicar, sempre que se tenha por necessário, a forma rigorosa, transliterada segundo o sistema escolhido.
“Quanto ao artigo al seguido de h: embora da reunião de l e h resulte o dígrafo lh que nós somos naturalmente levados a pronunciar segundo a correspondente regra ortoépica, não devemos no entanto hesitar na ortografia com essas duas letras: Alháçane, Alhoceine, etc.
“O único remédio para evitar a pronúncia incorreta do dígrafo seria a interposição de um traço de união entre as duas letras; mas dessa forma quebraríamos a tradição portuguesa, conforme ao uso árabe que mantém inseparáveis o artigo e o nome por ele determinado”.
ANOTAÇÕES AO PREFÁCIO
(PP. 5-7)
P. 5, 1. 5: Geographi] No Tratado da Sphera (vol.1, 1) Pedro Nunes qualificou-se de cosmógrafo, e aqui qualifica-se de geógrafo; as duas palavras exprimem segundo ele o mesmo conceito, o qual remonta a Ptolomeu e se pode ver no vol. I destas Obras, pp. 92-94.
P. 5, 1. 7: sermo] Não é esta a única conversação sábia na corte de D. João III que deu origem a um livro, pois Álvaro Gomes confessa ter escrito o seu Tractado da perfeiçaom da alma, ainda inédito, para responder à curiosidade do próprio rei em saber “se se podia provar por razões naturaes e dictos de philosophos a nossa humana alma ser immortal e viver pera sempre”. Ver a nossa anotação de p. 451 ao vol. II da Parte II das Noticias Chronologicas da Universidade de Coimbra... de Francisco Leitão Ferreira (Coimbra, 1940).
P. 5, ll. 11-12: acerrimo defensore] Esta referência, corroborada pela de 11. 14-15, permite determinar o ano, no qual, ou a partir do qual, Pedro Nunes iniciou a redação do De crepusculis.
Com efeito, o infante D. Henrique (n. 31-1-1512 † 30-1-1580), sendo já arcebispo de Braga, foi nomeado por D. João III inquisidor geral do reino em 22 de Junho de 1539, tomando posse em 3 de Julho imediato. Tinha então 27 anos de idade.
Nestes termos, o De crepusculis foi escrito entre 1539 (ou 1540) e concluído em 1541, pois a data do prefácio é de 17 de Outubro deste ano.
A circunstância deste livro ter sido redigido num período de tempo relativamente curto inculca que o assunto já era anteriormente objeto de investigação e de reflexão. A densidade e exatidão do pensamento, assim como a sua ordenação e expressão definitivas, são indício de maturação longamente sazonada, normalmente incompatível com a pressa; e com efeito, pelo que respeita, pelo menos, à variabilidade do crepúsculo, sabemos por expressa declaração de Pedro Nunes (Prep. XVII), que tinha encontrado a respetiva explicação havia já “longo tempo”.