6. Anotações ao De Crepusculis

P. 5, ll. 17-19: non illius (...) fortunamque pertinemtibus agit] Notou Ribeiro dos Santos (Memória da vida e escritos de Pedro Nunes, loc. cit., p. 280) que este passo testemunha que Pedro Nunes foi “tão dado aos estudos da verdadeira Astronomia, (...) quão alheio daquella vãa judiciaria, que ainda muito se inculcava no seu tempo”.

Além disto, é também a única referência que Pedro Nunes faz em toda a sua obra à astrologia como pretensa disciplina científica; por isso não é verosímil a tradição que atribui ao nosso astrónomo um prognóstico astrológico, e que, com razão, Ribeiro dos Santos (eo. loc.) criticou: “Conta-se (creio que sobre a fé de Manoel de Faria e Souza) que Nunes prognosticara ao Senhor Rei D. Sebastião, quando houve de tomar o governo destes Reinos no dia 20 de Janeiro de 1568, que lhe não succederia bem, se o tomasse naquelle dia. Contudo em nenhuma de suas Obras apparece vestigio de se haver dado aos estudos da Astrologia Judiciaria; mas antes da Dedicatoria do Tratado de Crepusculis se vê, que elle a desprezava, porque referindo, como o Senhor Infante D. Henrique (que depois foi Rei) folgava de ouvir os theoremas de Astronomia, accrescenta —Non illius quidem fluxae fidei, et pene iam explosae, quae de iudiciis ad uitam fortunam que pertinentibus agit, sed quae de syderum cursu deque uniuersa coeli ratione disputat: o que mostra a má conta em que elle tinha a Astrologia Judiciaria; e como a havia por couza vãa, e já quasi desterrada: e estes solidas sentimentos não combinão com os prognosticas que lhe attribuem”.

Há alguns anos, o conde de Sabugosa, no medalhão histórico--literário de “A Filha de Pedro Nunes” inserto nas Neves de Antanho (Lisboa, 1918, pp. 174-201), representou Pedro Nunes como “matemático (...), filósofo e um quási nada astrólogo”, baseando-se no relato do prognóstico contado pelo P. José Pereira Baião (n. 1690 † 1743) no Portugal cuidadoso e lastimado com a vida e perda do senhor D. Sebastião. Historia cronológica de suas ações, e successos d'esta monarchia em seu tempo... (Lisboa, 1737), que transcrevemos: “Entrado pois o mez de Janeiro de 1568, mandou o Cardeal [D. Henrique] fabricar hum tablado junto dos Paços do Rocio, que chamavão dos Estaos, os quaes agora servem á Inquisição, onde ElRey então assistia com a Rainha, e nelle huma fermosa sala de madeira, tam espaçosa, que chegava quasi ao Convento de S. Domingos, toda armada de rica tapessaria da India, e aberta da parte de fóra para que o Povo visse o que nella se fazia; onde se formou hum estrado alto, com huma cadeira em cima cuberta com hum panno de borcado, debaixo de hum docel rico. Convocou-se a nobreza, e Prelados do Reyna: e estando tudo prompto para se fazer a Real função da entrega, em terça feira vinte do dito mez, dia de S. Sebastião em que ElRey cumpria justamente os quatorze anuas, dous dias antes veyo fallar à Rainha Pedro Nunes, Cosmografo mór do Reyna, e Mestre nas Mathematicas delRey, e lhe disse: que posto que ele exercitava pouco a parte da Mathematica, que julga de successos futuros, pela ter por fallivel, e chea de incerteza, com tudo, que o grande amor, que tinha a ElRey, e o zelo do seu serviço, e bem de sua pessoa o obrigarão a sahir do seu custume, e levantar figura sobre o dia, e tempo, em que se lhe havia de fazer entrega do governo, e se desvelara em apurar o juizo della, quanto permittia sua sciencia, e as regras da Mathematica, e depois de muy bem conciderado o que alcançava, lhe pareceo conveniente avisar a Sua Alteza, que sem dar a entender a causa, porque o fazia, cuidasse muito em dilatar o ato da entrega alguns dias, ainda que não fossem mais que tres, porque lhe affirmava, segundo o que entendia, que se ElRey começasse a governar naquelle dia, seria seu Reynado instavel, cheyo de inquietação ordinaria, e de muy pouca dura; e ainda que nesta sciencia não houvesse certeza, e estivesse tudo dependãte da vontade de Deos, que dispunha dos Reys, e Reynos com providencia incomprehensivel, todavia se devião respeitar as causas segundas, mayormente podendo-se fazer com a demora de tam pouco tempo, sem prejuizo.

“Agradeceo-lhe a rainha o zelo, e amor, que mostrava ter a EIRey, mas não conveyo no que lhe aconselhava, por estar tudo apparelhado, e assentado para dia de S. Sebastião, e porque seria meter a EIRey em alguma suspeita, dilatando-lhe por mais tempo a entrega do Reyno, sem lhe darem a entender a causa, e que o Cardeal a quereria saber, e dizendo-lhe qual era, a não teria por bastante julgando-a por redicula; e negando-lha teria em que cuidar, por onde era melhor encõmendar o negocio a Deos, em cuja mão estavão os bons successos, e guardar em segredo o que lhe tinha cõmunicado. Até essa razão (lhe disse Pedro Nunes) tinha eu por tam certa, que estive para o dizer a V. A. antes de lha ouvir: e assim vejo, que são inevitaveis os trabalhos deste Reyno, de parte dos quaes V. A. será testemunha, ainda que não dou remate delles, em que consiste nossa pouca ventura. Semelhante prognosticação foy feita a ElRey D. Duarte, e ambas sahirão verdadeiras”. (Liv. I, cap. XXIII: “De como ElRey tomou entrega cio governo do Reyno, e do que nisso passou”, pp. 101-102).

O Dr. F. Gomes Teixeira, que justamente julgava inconcebível que Pedro Nunes tivesse acreditado e praticado a astrologia, observou que “talvez a narrativa seja mais uma lenda (deturpação de um facto sucedido quando D. Duarte subiu ao trono, também contado pelo conde de Sabugosa) a ajuntar a muitas outras sobre o visionário e simpático monarca, mistura de louco, de heroe e de Santo (...)”. Ver especialmente “Pedro Nunes e a Astrologia”, estudo inserto no livro Conde de Sabugosa. In Memoriam (Lisboa, 1924), pp. 193-195.

P. 5, 11. 20-21: decem abhinc annis...] Esta referência precisa o ano em que D. João III incumbiu Pedro Nunes de ensinar as matemáticas ao infante D. Henrique, pois datando o De crepusculis de 1541 o magistério teria começado em 1531, isto é, tendo o infante 19 anos e Pedro Nunes, que já era cosmógrafo do reino e lente da Universidade de Lisboa, 29.

Parece que o ensino não foi além de 1533, como noutro lugar inculcamos.

P. 5, l. 21: mathematicis scientiis instituendum] A expressão “ciências matemáticas” deve entender-se em sentido amplo: ciências que recorrem à demonstração matemática, como se depreende do quadro de estudos do infante abaixo indicado, e, relativamente à cosmografia, de um passo do Tratado em defensam da carta de marear: com o regimento da altura (vol. I, p. 218).

O infante D. Henrique não estudou apenas matemáticas, nem Pedro Nunes foi o seu único mestre. Com efeito:

a) Relativamente à matéria dos estudos sabemos, sobretudo por Nicolau Clenardo na Epistola ad Christianos, que estudou o grego, o hebreu, a filosofia, a teologia e a matemática: “Tacebo Graecas, Hebraeasque literas, quas praeter Philosophiam et Theologiam utcunque degustauit, nec nominabo Mathematicas, quas et ipsas didicit”. Ver Correspondance de Nicolas Clénard, publicada por Alphonse Roersch, t. I (Bruxelas, 1940), pp. 227-228.

Como é óbvio, cumpre acrescentar o latim, cujo estudo é bem possível o infante tivesse iniciado na meninice. Quando em 1533 recebeu pela primeira vez o seu famoso mestre flamengo, falou-lhe em latim por conselho de André de Resende, o qual conta ainda na Vida do Infante D. Duarte (p. 32) “que logo assentou que dahi em diante como o mestre visse e estivessem á lição todos os presentes fanassem latim”.

b) Relativamente aos mestres temos as seguintes notícias:

— Gaspar Moreira, segundo o informe de André de Resende, do qual diz que fora mestre de latim dos infantes D. Henrique e D. Duarte e era “bom jurisconsulto, e meão latino, mas pouco prático, e accommodado ao modo que se hão tratar os engenhos sublimes e altiuos, e mais de Principes de tão tenra idade; com o que os Infantes aproueitavão pouco, e elle lhes era enfadonho, que ouvião suas lições mais por reuerencia, e temor do Cardeal [D. Afonso], que os constrangia, que por affeição do mestre”. (Vida do Infante Dom Duarte..., mandada publicar pela Academia Real das Sciencias de Lisboa, Lisboa, 1789, p. 10).


?>
Vamos corrigir esse problema