7. Anotações ao Liber De Crepusculis de Allacen

Abu Ali al Hasan ben al Hosain ben al Haitam, comummente conhecido entre nós por Allacen (ou Alhazen), nasceu em Basora em 965, floresceu pelos anos de 996-1020 e faleceu no Cairo por 1038 (?). Foi um escritor muito fecundo, atribuindo-se-lhe mais de cem escritos de geometria, física, medicina, filosofia e astronomia. Entre estes conta-se o tratadinho sobre a refração atmosférica, sob o título dos crepúsculos, cuja autoria jamais foi contestada, visto figurar na relação dos escritos traduzidos por Gerardo de Cremona (n. 1114 †1187) (Haec vero sunt nomina librorum, quos transtulit magister Girardus Cremonensis in Toleto) com a designação de Liber de crepusculis tractatus I, que a crítica tem unanimemente identificado com o tratado publicado por Pedro Nunes pela primeira vez. Não há, assim, dúvidas sobre a autoria deste escrito nem sobre a identidade do seu benemérito tradutor para latim; o mesmo, porém, se não pode dizer acerca da fidelidade da tradução, pois desconhecendo-se a existência de um códice com o texto árabe4 não há a possibilidade de contraprovar o trabalho de Gerardo de Cremona.         

Com o texto latino da tradução temos notícia dos seguintes códices, que dividiremos em dois tipos consoante o respetivo título:   

1) Alhomadi Malfegeir liber de crepusculis:

— Cód. Parisiense 7310,4. Ver Wüstenfeld, mem. cit., p. 66, e Suter, ob. cit., p. 95.      

— Cód. 4799 (fols. 77 v-78 r) da Biblioteca Nacional de Viena de Áustria. Ver E. Zinner, Leben und Wirken des Iohannes Midler von Kõnigsberg genannt Regiomontanus, Munique, 1938, p. 242.           

O título deste manuscrito oferece pequenas variantes: Liber abhomadi in alfegeyr est in crepusculo...;             

— Cracóvia, Cód. Iagell lat. 569. Ver C. Baeumker, Witelo, cit., p. 227, n. 5;        

Sobre o sentido das palavras Alhomadi Malfegeir, ver a nota supra, da página anterior.             

2) De ascensionibus nubiam:    

— Em Cambridge, segundo o Catalog. Mss. Angl. et Hib., t. I, Pars III, p. 148, n.° 1685. (Apud Wüstenfeld, ob. cit., p. 66, e Suter, ob. cit., p. 95).    

Pedro Nunes foi quem pela primeira vez deu ao prelo este escrito, que teve até hoje as seguintes edições:   

— 1544: ver hic, supra;

— 1571 (3): ver hic, supra.         

— 1572: Opticae Thesaurus Alhazeni arabis libri septem, nunc primum edit. Eiusdem liber de crepusculis et Nubium ascensionibus. Item Vitellonis Thuringopoloni libri X. Omnes instaurati, figuris illustrati et aucti, adiectis etiam in Alhazenum commentariis a Federico Risnero. Cum privilegio Cfflsareo et Regis Galli& ad sexennium. Basileze per Episcopios M. D. LXX. In-fol. de 778 páginas. A p. 283 começa: “Alhazen filii Alhayzen de crepusculis et nubium ascensionibus liber unus a Gerardo Cremonensi interprete”. (De p. 283 a 288).       

Frederico Risner, que diligentemente preparou esta edição, devida à descoberta casual que Pierre de ia Ramée (Petrus Ramus) havia feito de um manuscrito da Optica, de Allacen, não logrou alcançar um códice com a tradução de Gerardo de Cremona6, pelo que utilizou o texto, e respetiva ilustração, publicado por Pedro Nunes em 1542, no qual corrigiu a pontuação, emendou, substituiu e introduziu palavras em ordem à maior clareza das ideias ou correção da linguagem, e sistematizou a matéria ordenando-a sob a forma de proposições, cujos enunciados reproduziremos em anotações seguintes, sem aliás alterar a ordem dos períodos. Consequentemente, a edição fundamental desta obra de Allacen pertence, e continua pertencendo, ao nosso astrónomo, que na sua reedição de 1571 (3), que cremos não ter chegado ao conhecimento de Risner, apenas introduziu no respetivo texto raras e meras substituições de palavras.

Ignora-se completamente o paradeiro do manuscrito da tradução de Gerardo de Cremona que Pedro Nunes utilizou, e que intitula primeiramente De causis crepusculorum e mais adiante de De crepusculis; nestas condições, só conjeturalmente se pode escrever acerca da maneira como veio ao conhecimento da existência de um escrito de Allacen sobre o crepúsculo e em que arquivo ou biblioteca logrou, diretamente ou por diligência de solícito correspondente, uma cópia da respetiva tradução latina. Tentemos, em todo o caso, tais conjeturas.

Em escritos que Pedro Nunes indubitavelmente leu e possivelmente possuiu, como o Breue compendium perspectiuffl communis de João Peckham (João de Pisa) e a Perspetiva de Vitelo, encontrou o nome de Allacen acatado, seguido e comentado como teórico de re optica; cremos, porém, que foi Regiomontano quem lhe revelou a existência do escrito do operoso polígrafo islamita, no seguinte passo da Oratio introductoria in omnes scien tias Mathematicas loannis de Regiomonte, Patauij habita, cum Alfraganum publice praelegeret:

“Succedit etiam speciosa radiorum uisualium disciplina, quam Latini Perspetivam uocant, cuius uolumen ato tractatuum Arabico inuentore Alhacen ad Romanos philosophos traductum est cum libello sua de crepusculis". Viteilio autem noster Thuringus codicem decem partium latinitati contexuit more Geometrarum sententias scitu dignissimas per membra distinguens. Euclidis denique scripta de uisu et speculis interpretum officio ad nos peruenere. Rogerium Bacon Anglicum perspetiva sua compendiosa cum libello speculi comburentis celebrem posteris reddidere. Negue Archimedis Siracusani reminisci piget, qui disciplinam hanc nostram speculis suis philosophicis mirum in modum exomauit, quorum exempla prope diem in hac urbe uestra conficere institui”.

A Oratio, proferida na Universidade de Pádua em 1464 como introdução às lições sobre os Rudimenta astronomica de Alfragano, foi lida por Pedro Nunes, não só porque a cita, precisamente como fonte de informação bibliográfica, na carta dedicatória do Libro de Algebra ((Joanne de Monteregio em htla oração que fez dos honores das Mathematicas, faz menção dos Liuros que Diophante autor grego desta arte escreueo, que ajnda riam sam diuulgados”), mas ainda por ter sido publicada numa coletânea, cujo frontispício reproduzimos em fac-símile ", e que manuseou, pois as citações de Albaténio que ocorrem no De crepusculis referem-se, como vimos, a passos do De motu stellarum nela inserto.

O apuramento deste facto tem importância.

É que a citação do De crepusculis de Allacen naquele passo da lição inaugural em que Regiomontano fez o sumário bibliográfico da história científica da Perspetiva, “quae lineam radialem contrectat”, isto é, da Ótica no sentido largo do termo, assinala, segundo as nossas investigações, a primeira referência a esta obra num livro impresso; consequentemente, é legítimo conjeturar, senão concluir, que foi por ela que Pedro Nunes soube da existência deste escrito.

Como veremos no decurso destas Obras, Pedro Nunes conjugou admiravelmente a criação original do sábio com o saber livresco do erudito, amante e desejoso do livro bem editado e do informe raro. A sua erudição, extensa e sempre apropriada, foi tão consciente e segura de si que não hesitou em confessar carências e dificuldades; por isso a informação de Regiomontano, revelando-lhe a existência de um escrito inédito sobre o assunto em cujo esclarecimento empenhava o seu prestígio científico na roda culta da corte, e por demais de autor cujo saber apreciara mediante a obra de Vitelo, de tão ampla e prolongada influência, suscitou-lhe naturalmente o desejo de obter uma cópia do manuscrito.


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