Newton e o ideal da ciência moderna

Num e noutro ideal a mente apeteceu as verdades eternas e como que ignorou os objectos concretos; porém sob esta aparente identidade esconde-se aquela oposição a que aludi. No ideal aristotélico-escolástico o esforço da razão consistia em dominar o diverso e o múltiplo da experiência sensível pelo recurso às ideias de substância e causa, enquanto que no ideal setecentista, essencialmente mecânico-racional, procura-se a explicação na lei, isto é, na razão segundo a qual os fenómenos coexistem ou se sucedem. Tão radical oposição, Senhores, ditou imperativamente comportamentos diferentes perante a realidade.

E de facto, no ideal aristotélico a física converteu-se na especulação abstrata sobre a essência dos corpos,isto é, numa ontologia de essências às quais, por via silogística, se reportava a realidade; pelo contrário, no ideal moderno o físico procura a lei, isto é, a relação constante através das variações, e esta relação, embora seja uma relação lógica expressa em termos matemáticos, supõe o exame prévio e insistente da realidade concreta. Por isso, entre os dois ideais científicos há um abismo quanto à forma da prova. Para o sequaz de Aristóteles, quando se não inclinava submissamente à autoridade, a prova consistia em reportar uma proposição a outra proposição ou uma coisa à sua espécie e respectivo género; para o sábio moderno, em permanente tensão crítica, a prova consiste não só em referir com evidência uma proposição a outra, mas também em conduzir uma proposição, mediante o confronto da experiência, às suas mais remotas consequências.

A observação e a experimentação tornaram-se, assim, essenciais à actividade científica moderna, tão essenciais que uma generalização só conquista carácter científico quando compreende todos os factos que a implicam ou sobre que assenta, ou pode ser reportada com evidência a um princípio mais geral já demonstrado. Não nos oferece, porventura, a história da ciência exemplos, nos quais a razão partindo da observação de factos particulares atinge indutivamente uma lei geral e por dedução desta Iei descobre a existência de outros factos particulares até então inapercebidos? Não nos indicam estes exemplos, os quais exprimem por assim dizer o ideal da actividade científica, que, ao invés do sábio antigo, para quem a conclusão era verdadeira quando extraída de premissas estabeleci das como verdadeiras e com o rigor silogístico se contentava, para o sábio moderno a verificação da conclusão pelo confronto com os factos é tão imperativa como a das premissas?

A modernidade ofereceu-nos, pois, não só uma concepção nova da dedução, cujo grande artífice foi Descartes, e a constituição do método experimental, cujo grande teórico e realizador foi Galileu, mas também um ideal do conhecimento científico da natureza, residindo no número e na medida, porque só a matemática permite, através do confronto com a experiência, precisar e decidir das observações e das construções intelectuais. A Galileu deve a Humanidade o trânsito decisivo para a via científica, ao operar a revolução imensa de trocar a reflexão do porquê pelo como do movimento, e os pressupostos da física aristotélica pelos conceitos matemáticos de tempo e espaço. Do seu génio data a ciência nova, assim como dos postulados do novo rumo científico o advento de alguns dos mais profundos problemas filosóficos, e permiti que como ilustração do que venho dizendo vos recorde a página famosa do prefácio da segunda edição da Crítica da Razão Pura, na qual Kant esclarece admiravelmente a instauração do ideal científico moderno: «Quando Galileu», escreve, «fez rodar as suas esferas sobre um plano inolinado com aceleração determinada e escolhida por ele, ou Torricelli lançou ao ar um peso que sabia ser igual ao de uma dada coluna de água, ou quando, mais tarde, Stahl transformou metais em cal, e cal em metal, eliminando ou acrescentando certos elementos, houve uma nova luz para todos os físicos. Eles compreenderam que a razão não apercebe senão o que ela própria produz de acordo com os seus próprios planos, que ela deve tomar a dianteira nos princípios que determinam os seus juízos segundo leis constantes, e forçar a natureza a responder às suas interrogações, em vez de se deixar conduzir por ela como com uma corda: porque de outro modo, as nossas observações, feitas ao acaso e sem nenhum plano prévio, não poderiam reportar-se a uma lei necessária, que é o que procura e exige a razão. Esta deve apresentar-se à natureza tendo de um lado os seus princípios, os quais apenas podem dar a fenómenos concordantes a autoridade das leis, e do outro a experimentação, tal qual ela a imagina de harmonia com estes mesmos princípios. Ela obriga-a a instruí-la, não como um escolar que tem que ouvir tudo o que agrada ao mestre, mas como um juiz nas suas funções, quando obriga as testemunhas a responder às perguntas que lhes dirige. A física deve, assim, a feliz revolução operada no seu método à simples ideia de que ela deve procurar e não imaginar na natureza, em conformidade com as ideias que a própria razão dá, o que dela deve aprender e da qual nada poderia saber por si mesma. Foi assim que a física pôde entrar no caminho seguro da ciência, depois de não ter feito senão vacilar durante tantos séculos”.

Sem observação nem experiência não há conhecimento científico da natureza, mas como nos adverte Kant nesta página digna de meditação, a ciência está para além da experiência, porque o seu objetivo é a integração do dado em certas ideias conexas com a experiência ou mesmo independentes dela, como as formas matemáticas.

Eis-nos chegados, Senhores, após tão longo cerco, ao homem cuja mente prodigiosa deu forma sempiterna a este ideal, autor como vos disseram e dirão os meus sábios colegas, da mais vasta generalização científica, criador de um método original de análise, e humilde e obediente espectador da experiência, la vera maestra, na frase de Galileu. Newton não foi apenas o experimentador ideal; foi também um teórico do método, porém num sentido diverso de Descartes e de Bacon. Como observou Léon Bloch, “não acreditava no poder mágico de um método, qualquer que ele fosse. O que pode tornar fecunda a ciência não é a estrita conformidade do raciocínio a preceitos universais, é a iniciativa e a inteligência do sábio. Se bastasse aplicar formalmente as mesmas regras, supostas exatas, a todas as espécies de objetos, para construir uma física coerente, cairíamos na ideia de que a ciência é sempre idêntica a si própria e que o mesmo instrumento bastaria para tudo. Segundo Newton, isto não é possível. A cada momento da sua evolução, a ciência é necessariamente fragmentária, e cada uma das partes que a compõem tende a desenvolver-se num sentido especial. E por isto que os métodos particulares têm na realidade mais importância, que um sistema de preceitos gerais. O método experimental, como o método matemático, não pode ser uniforme, diferenciando-se segundo os objetos e as ordens de problemas, que considerar. Se existem regras, que devam seguir-se sempre no estudo da física, estas regras não podem ter por fim a aplicação direta a cada caso. Necessariamente abstratas e desprovidas de conteúdo, não podem servir de instrumentos de investigação. A sua utilidade consiste sobretudo em inculcar hábitos de espírito”. Este lúcido comentário do sábio autor de La Philosophie de Newton, mostra-nos que a concisa metódica newtoniana, embora de alcance geral, quero dizer, aplicável tanto à ciência dedutiva como indutiva, tende essencialmente, ao contrário do método cartesiano, à elaboração de métodos especiais. Claro que me dispensais de insistir sobre as quatro regras newtonianas, ou sejam o postulado da simplicidade da natureza, a atribuição, tanto quanto possível às mesmas causas, dos efeitos naturais do mesmo género, o direito à generalização e o comedimento no estabelecimento de teses, porque não é na lógica, mas no ideal, na prática e nos resultados científicos que se edifica a glória de Newton. Ele prosseguiu e radicou o ideal da ciência moderna, a-histórico e geométrico, o qual, depois da constituição da história natural e das ciências biológicas, não coincide rigorosamente com o ideal contemporâneo, que tudo concebe evolutivamente e sob a categoria da relação. Ele estabeleceu definitivamente, após Kepler e Galileu, a unidade das leis dos mundos terrestre e celeste, mediante as quais o universo alcançou a simplicidade e harmonia de um Cosmos; e fundamentou cientificamente a conceção mecânica da natureza, considerada como um sistema de objetos físicos em movimento, explicável por um mínimo de relações entre elementos reais e homogéneos. E na verdade, Senhores, em momento algum da sua atividade científica ele careceu de recorrer a premissas metafísicas, de tal ordem que o juízo famoso de D'Alembert no Discurso preliminar da Enciclopédia, não sofre a mancha do anacronismo: “Newton, à qui la route avait été préparée par Huyghens, parut enfin, et donna à la Philosophie une forme qu'elle semble devoir conserver. Ce grand génie vit qu'il était temps de bannir de la Physique les conjectures et les hypothèses vagues, ou du moins de ne les donner que pour ce qu'elles valaient, et que cette science devait être uniquement soumise aux expériences et à la Géométrie”.


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