2. Correspondência científica dirigida a João Jacinto de Magalhães

Dos portugueses que na segunda metade do século XVIII se devotaram ao desenvolvimento e à aplicação das ciências exatas nenhum alcançou o renome de João Jacinto de Magalhães. Nascido em Aveiro (4 de Novembro de 1722) numa família que se brazonava de cantar nos antepassados o navegador Fernão de Magalhães, destinaram-no os seus à Igreja, entrando aos onze anos para a congregação dos cónegos regrantes de Santo Agostinho, de Santa Cruz de Coimbra, cujos votos veio a professar com o nome de D. João de Nossa Senhora do Desterro.              

Foi com o hábito de crúzio que o oficial da marinha francesa e astrónomo Gabriel de Bory (1720-1801) o conheceu em Coimbra, quando veio expressamente a Portugal para observar o eclipse solar de 26 de Outubro de 1753, que em França calcularam que seria total em Aveiro e cuja observação fora inicialmente planeada por Le Monnier, da Academia das Ciências de Paris, na esperança de confirmar a opinião, que colhera na observação do eclipse total de 1724, de que a Lua não tinha atmosfera sensível. Substituído por De Bory, que em 1751 estivera na Galiza para determinar a posição dos cabos Finisterra e Ortegal, deu-nos este ilustre marinheiro o relato da observação do eclipse de Aveiro, das suas impressões do nosso país e da determinação da posição de alguns pontos das costas de Portugal e da Madeira.

Pelo relato sabemos que, terminada a observação de Aveiro, cuja Longitude foi calculada por Méehain e corroborada por Borda, regressou a Lisboa por terra, detendo-se em Coimbra nos princípios de Novembro. A sua atenção foi particularmente solicitada para o mosteiro de Santa Cruz, de cujos cónegos regrantes diz que «cultivent les Sciences avec succes: ils lisent les ouvrages de Newton». A universidade como que aparece em plano secundário em relação ao mosteiro, devendo-se o facto, sem dúvida, à circunstância de ter sido «ohargé de nous montrer les curiosités du Monastere et la Bibliothêque de l'Université (... ), Magalhaens, alors Chanoine de Sainte-Croix, et maintenant correspondant de cette Académie [das Ciências de Paris]; il s'en acquita avec beaucoup de complaisance et de politesse. En 1744, il a obtenu du Pape Benoit XIV un Brev pour sortir de sa Congrégation, et aprês avoir voyagé en différens endroits de l'Europe, il réside et cultive à Londres les Arts et les Sciences».

Bory e Magalhães criaram em Coimbra relações de amizade, que só terminaram com a morte. Concorreram para isso, como é de crer, as qualidades morais do jovem frade crúzio, que no decurso da sua longa e por vezes difícil existência de expatriado pôde sentir no afeto e no reconhecimento de numerosos amigos que vale a pena ser digno, honrado e prestante; no entanto, foram os dotes intelectuais e os interesses científicos do nosso compatriota que primeiramente impressionaram o astrónomo francês, pois sob o hábito de religioso pulsava uma inteligência mais afeiçoada aos ideais científicos do que às lucubrações teológicas. Bory jamais esqueceu o seu cicerone de Coimbra, a cujas gentilezas correspondeu mais tarde, pelo menos, acompanhando e louvando- lhe a atividade científica, patrocinando-lhe a eleição de sócio correspondente da Academia das Ciências de Paris em 4 de Setembro de 1771, a quem ficou academicamente associado, e com quem trocou opiniões e observações científicas.

Em data incerta, muito provavelmente entre 1756 e 1758, secularizado, mas não despadrado, o que, parece, só veio a dar-se na Inglaterra, por motivos que também se ignoram embora se possam conjeturar, Magalhães saiu de Portugal «résolu à ne plus vivre que sons un gouvernement ou la liberté personnelle soit à l'abri du despotisme ministériel ». Como tudo leva a crer, dirigiu-se directamente para Paris, confiado, porventura, no apoio moral que lhe dispensariam Gabriel de Bory e o médico António Nunes Ribeiro Sanches.

Os primeiros anos da expatriação não Lhe foram fáceis. Magalhães deixara bens em Portugal, notadamente uma propriedade rústica, que designa de «Quinta da Graciosa», e umas casas em Aveiro, no bairro do Alboi, mas os rendimentos em moeda portuguesa não eram sufiicentes para lhe garantirem a estadia no estrangeiro. Daí a necessidade de adquirir localmente fontes de receita, constituindo precisamente uma singularidade do talento de Magalhães o ter conseguido que o seu espírito inventivo, o seu escrúpulo de construtor e garante de instrumentos de precisão, o seu «amadorismo» científico e as suas relações pessoais com os mais notáveis homens de ciência da época, lhe granjeassem digna e honradamente recursos económicos que lhe permitiram um final de vida relativamente desafogado.

A primeira fonte de ingressos parece ter consistido na remuneração de comissões ou encargos literários procedentes do reino, pois não ocorre outra explicação para o facto de ter publicado em Paris, em 1760, a Vida de Fr. Bartolomeu dos Mártires de Fr. Luís de Sousa, o Novo epítome da gramatica grega de Porto-Real, composto na língua portuguesa para uso das novas escholas  e um artigo no Journal étranger (número de Abril), escrito sob a forma de carta de mr. l'Abbé de Magalhaens, contendo o resumo da Memória sobre as providências tomadas por ocasião do terramoto, mandada publicar por Pombal , eem 1763, em Lisboa, na oficina de Francisco Luís Ameno, a traduçãodo seguinte livro do capuchinho Fr. Norbert, acérrimo inimigo dosjesuítas: A fé dos catholicos: obra dirigida a instruir e confirmar na sua crença os catholicos, e mostrar aos que ° não são que não têem razão alguma para os accusar de que vivem errados... Escripta pelo abbade Platel e traduzida do francês. Como se depreende do merotítulo destes livros, a atividade de Magalhães nos primeiros temposda expatriação não corresrpondeu aos interesses do seu espírito, dirigindo-se para Portugal por não ter podido alcançar em França osrecursos de que carecia. Resolvido a não voltar ao reino, as circunstânciasimpunham que procurasse noutro país as condições materiaisde vida que a França lhe não proporcionava. Esse país foi a Inglaterra,para cuja capital se dirigiu em 1764, na qual veio a estabelecerdefinitivamente a residência, vivendo, pelo menos nos últimosanos, no nº12 de Nevil Court, Fetter Lane, e em cujo arrabalde deIslington faleceu em 7 de Fevereiro de 1790, com sessenta e oito anosde idade.

Pode pensar-se, não sem algum fundamento, que saíra de França com a sensação de que ia tentar mais uma aventura, pois da sua própria pena sabemos que Ribeiro Sanches o «forçou a aceitar dinheiro para vir para Londres; nunca deixou de me enviar uma quantia anual com uma regularidade tão notável como escrupulosa, não querendo nunca aceitar alguns livros que lhe mandava sem pagar separadamente o seu valor». As circunstâncias, porém, foram-lhe propícias, pois embora ignoremos as dificuldades que teve de vencer ou as facilidades que encontrou, um facto ressalta com evidente significação: Magalhães não careceu de recorrer à obscura canseira de tradutor ao serviço de encomendas de Portugal, porque conseguiu organizar a sua vida, com universal e merecido renome, coerentemente com os seus interesses científicos e com os seus dotes de inventor.

Pela época em que chegou a Londres, os construtores ingleses de instrumentos científicos de precisão gozavam de reputação universal. Não sendo uma indústria exclusivamente inglesa, pode, no entanto, dizer-se que, por então, a mecânica de precisão era uma actividade caracteristicamente britânica, ninguém igualando na segunda .metade do século XVIII a reputação de Dollond, de Adams e de Jesse Ramsden, que em 1786 foi admitido na Royal Society e em 1773 executara perfeitamente a construção que Magalhães inventara para os oitantes e sextantes.


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