2. Correspondência científica dirigida a João Jacinto de Magalhães

«Ricardo Jorge refere-se a uma carta que ao tempo estava em poder de [Aníbal] Fernandes Tomás, datada de 1774, dirigida a Buchenne, secretário de Trudaine de Montigny intendente-geral de finanças, director das pontes e calçadas e membro honorário da Academia das Ciências de Paris. Estava a preparar-se para partir para Paris, e mandava adiante seis caixas de livros e instrumentos. Levava para a Academia das Ciências de Paris as Philosophical Transactions oferecidas pela Real Sociedade de Londres e dois novos sextantes de sua invenção, próprios para marear, assim como muitas encomendas para pessoas mais ou menos distintas. Entre elas encontramos o nosso Sanches para quem enviava pacotes de livros e massinhos de símplices da Índia. São mencionados mestres consagrados de Astronomia: Messier e Lalande e o padre Rozier, director do Journal de Physique, que durante anos acompanhou os progressos das ciências físico-naturais, afora outras pessoas de menos evidência. O trecho mais valioso é relativo a um livro e uma carta do agrónomo Young ao Marquês de Mirabeau, pai do célebre tribuno. Magalhães privava com Young e com o seu amigo Arbuthnot, que Ricardo Jorge supõe filho ou neto de outro Arbuthnot, celebrado médico e escritor do tempo da Rainha Ana».

Independentemente deste grupo, poucas mais cartas conhecemos, do punho de Magalhães ou do dos seus correspondentes, respeitantes ao período que nos ocupa, isto é, os anos anteriores à sua entrada para a Royal Society (1774).

No conjunto, são quatro, sendo uma inédita, de 1770, de Koestner, de Gottingen, e três já conhecidas, de Messier (1769 e 1771) e de Bourriot (1770), por terem sido publicadas nos Philosophical Transactions. A nota característica de todas estas cartas é a informação científica. As expansões afectivas são sotopostas ao interesse científico: os amigos e conhecidos de Magalhães dirigem-se-lhe para lhe transmitirem informes ou solicitarem dilligências, e Magalhães, espontaneamente ou de ofício, constitui-se em informador do que considera merecedor de ser conhecido pelo valor científico ou pela utilidade prática, que, aliás, tinha por estreitamente conexas, senão inseparáveis, Não faltam adiante, nas cartas que publicamos, os testemunhos comprovativos desta actividade benemérita; e no que toca às suas relações com a Academia das Ciências de Lisboa, da qual foi eleito sócio correspondente em 1780, é bem expressivo o facto de Magalhães se haver oferecido como informador científico, porque “tendo a honra de ser solicitado frequentemente por membros de várias Sociedades Literárias da Europa para a comunicação do que ocorre à minha notícia que seja útil ao progresso das Ciências e Artes, não quisera ter o desgosto de suspeitar que um tal zelo se acha dormente na minha Pátria”.

A notoriedade que a Royal Society deu a Magalhães, admitindo-o no seu grémio, tornou como que em ocupação o que até então havia sido principalmente inclinação da propensão natural. Diante de si, abriu-se então um período de invulgar atividade epistolográfica, dado ser depois de 1774 que se alarga notavelmente o círculo dos seus correspondentes e o âmbito das suas relações.

Até ao presente conheciam-se deste período algumas cartas dispersas de correspondentes, entre os quais avultava Volta, e do punho de Magalhães, as que em sua vida saíram a público em jornais científicos e as que foram publicadas por Maximiano Lemos e Cristóvão Aires. Sabia-se, além disto, de um grupo de dez cartas escritas por Magalhães a Turgot, entre 17 de Julho de 1776 e 21 de Maio de 1779, que Sousa Viterbo possuiu e de que deu notícia e das que escreveu a Lavoisier, e que indicaremos em nota da carta que deste adiante publicamos. Do conjunto dos documentos conhecidos, que não particularizamos, e dos informes e afirmações de biógrafos, dos quais sobressai o artigo de Weiss na Biographie universelle, de Michaud, fez o Dr. Alexandre Sousa Pinto uma síntese quando escreveu que as cartas de Magalhães “mostram que ele estava relacionado, entre muitos outros e além de Sanches, com Le Bègue de Presie, médico amigo de Rousseau, o marquês de Girardin, em cuja casa de Ermenonville conheceu Rosseau nos últimos dias da vida deste, Bezout, para quem mandava instrumentos de física e astronomia, Bailly e Rochon astrónomos, o Padre Sigorgne, um dos mestres de Turgot; Volta, o físico de Pavia, o grande Lavoisier, Banks, o botânico, que foi uma figura notável da Ciência inglesa do século XVII, Ingenhouz, químico e naturalista holandês, Kirwan mineralogista, Nairne, físico, Boulton e Watt, associados para a exploração da máquina a vapor, Priestley e muitos mais”.

Com o núcleo que agora se publica adquirem facetas novas algumas das relações científicas de Magalhães que já eram conhecidas, dão-se a conhecer novos correspondentes e novos aspetos da atividade do nosso compatriota e, sobretudo, descobrem-se vias de novas investigações em numerosos arquivos e bibliotecas e sociedades científicas, que, sendo afortunadas, é de crer conduzam à organização do mais copioso, variado e valioso epistolário científico com raiz na personalidade de um português do século XVIII. Não atingirá, certamente, o volume e o vulto da assombrosa correspondência de Mersenne, de Peiresc, de João (III) Bernoulli, em cujo espólio, aliás, é de esperar que se encontrem cartas do nosso físico; no entanto, qualquer que venha a ser o quantitativo final — prevê-lo é atualmente impossível —, o epistolário de Magalhães assinalará os dotes ide uma personalidade invulgar e as características e rasgos de uma fase da história da ciência.

As cartas que publicamos são dirigidas a Magalhães; nenhuma é do seu punho O complemento natural de todas elas seriam as próprias cartas de Magalhães que lhes correspondem, algumas das quais é possível se conservem em arquivos de sociedades científicas de Inglaterra, França, Holanda, Bélgica, Alemanha, Suíça, Itália, Espanha, Rússia e América do Norte.

Com serem incompletas, isto é, não constituírem verdadeiramente um corpus, nem por isso deixam de ser valioso manancial de notícias e de acontecimentos histórico-científicos e testemunho vivo do carácter, da capacidade, dos recursos, do prestígio e do valimento de João Jacinto de Magalhães.

Sob este último ponto de vista, elas mostram, com efeito, que Magalhães, depois da admissão na Royal Society (1774), soube constituir-se correspondente de numerosos sábios e sociedades científicas. Como Mersenne, Peiresc, Huyghens, e poucos mais, Magalhães tinha, a um tempo, a avidez das novidades científicas e técnicas e a veemente satisfação em dar a conhecer um descobrimento recente ou a utilidade prática de um aperfeiçoamento mecânico ou instrumental. Sábios como Herschel e Volta apressam-se a transmitir-+Ihe observações e juízos, e observadores, como Ingenhouz, recorrem ao seu epistolário para terem a segurança da prioridade dos próprios descobrimentos; e Magalhães, por seu turno, informa amigos, como Bory, de novidades recentíssimas, como as experiências de Priestley, “que provam que a água pode converter-se em ar elástico e permanente” e a sua própria invenção de um aperfeiçoamento técnico nas pêndulas astronómicas.

Daqui, a importância histórico-científica do epistolário de Magalhães, principalmente em relação à cronologia, dado que uma das maiores dificuldades com que depara o historiador da ciência é o facto dos descobrimentos se apresentarem quase sempre com a respetiva fundamentação lógica e não segundo a ordem cronológica da constituição, o que, aliás, Pedro Nunes notou com a clara penetração de sábio que também era erudito, e de bom quilate.


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