Introdução ao ensaio filosófico sobre o entendimento humano de John Locke

No processo crítico da sistematização metafísica da Segunda Escolástica, cujo grande pioneiro e artífice foi Pedro da Fonseca (1528-1597) com as notáveis explanações e quaestiones que aditou à sua monumental edição, tradução e comentário dos livros I-IX da Metafísica de Aristóteles, atuaram fundamentalmente três correntes: o cartesianismo, o empirismo e o ecletismo.

Com mais ou menos vigor todas dão fé da sua presença entre nós no decurso do século XVIII. Nenhuma gerou qualquer movimento especulativo possante da filosofia da Escola: o cartesianismo, mais pela divulgação das conceções físicas que pela irradiação da sua metafísica e do racionalismo das ideias claras e distintas; o empirismo, pelo desapreço da problemática filosófica tradicional e correlativo interesse pelos resultados da observação e da experimentação concreta, e o ecletismo, pela liberdade de opinião e pelo repúdio do espírito de sistema.

De modo geral, as grandes direções intelectuais ou se orientaram por então no sentido metafísico-teológico ou no científico-racional, entendendo por tal o apreço dos conhecimentos exatos e a educação pela razão, de que a Reforma pombalina da Universidade foi expressão notável. Uma e outra destas direções assinalam o fito da atividade especulativa e prática dos melhores espíritos do século, assim como a fonte da energia com que ambas se defrontaram e opuseram em polémicas famosas, das quais nenhuma sobreleva a que teve origem no Verdadeiro Método de Estudar (1746), de Verney. Raros conseguiram furtar-se ao apelo vibrátil dos dois ideais, cuja opugnação apaixonou, por vezes até ao dramatismo, as lutas do pensamento, mas em mente alguma foram vividos e pensados em estado puro.

Em grau maior ou menor, todos deram acolhimento a teorias, distinções e motivações intelectuais heterogéneas, de sorte que se encontram conceções de innovatores, isto é, gassendistas, cartesianas e, sobretudo, pós-cartesianas, em defensores da síntese escolástica e conceções escolásticas em defensores da modernidade filosófica e da inquirição científica.

Daqui, a dificuldade, senão impossibilidade, de qualquer das correntes oitocentistas que se manifestaram entre nós até à divulgação do sensismo de Condillac poder considerar-se sob os pontos de vista da pureza doutrinal e da autenticidade das fontes. Somente o tema central e a tensão espiritual que lhes deu ser e vida permitem que as discriminemos no conjunto emaranhado das doutrinas, porque a situação cultural portuguesa não fez exceção à orientação geral do século XVIII, que Cassirer assim caracterizou nestes períodos lúcidos e penetrantes:

«Quando se trata do século XVII é possível abrigar a esperança de se poder caracterizar todo o seu conteúdo e desenvolvimento filosófico perseguindo-os de «sistema» em «sistema», de Descartes a Malebranche, de Espinosa a Leibniz, de Bacon e Hobbes a Locke. Ora estes fios condutores quebram-se à entrada do século XVIII, porque o «sistema» filosófico como tal perdeu a sua força vinculatória e representativa. O próprio Christhian Wolff, que manteve com todo o empenho a forma do sistema, que para ele implicava a verdade peculiar da filosofia, tratou em vão de abarcar e dominar desse modo a totalidade dos problemas filosóficos da época. O pensamento do Iluminismo rompe constantemente os limites rígidos do sistema e, nos espíritos mais ricos e originais, trata de se subtrair sempre ao rigor da disciplina sistemática. O seu carácter e o seu destino não se manifestam em forma mais clara e pura quando logra exprimir-se em corpos doutrinais, em axiomas e princípios, mas quando a vemos entravada na marcha do próprio pensar, quando duvida e indaga, quando aplana e constrói. Não é possível reduzir a mera soma de doutrinas particulares todo este movimento de vaivém, de flutuação incessante. A «filosofia» peculiar do Iluminismo é algo de distinto do conjunto de tudo o que pensaram e ensinaram os seus corifeus, um Voltaire e um Montesquieu, um Hume ou un Condillac, D'Alembert ou Diderot, Wolff ou Lambert. Não é possível apresentá-la como somatório e mera sucessão temporal das suas opiniões, porque não consiste tanto em determinados princípios como na forma e modo da sua explanação. Somente na ação e no processo, incessantemente progressivo, desta, podemos captar as forças espirituais que a governam e escutar os latidos da íntima vida intelectual desta época».

Antagónicas ou similares, todas as correntes do século se afirmam, defrontam e lutam corno expressão viva de ideais que punham em jogo o rumo da sociedade e o sentido da Cultura. Estudá-las no conjunto que as configurou e no sopro animador que lhes deu alento é uma tentação e um regalo; mas o estudo do conjunto não é possível sem o deslinde das características que as singularizam e das vicissitudes que sofreram. É o que vamos tentar relativamente a algumas correntes da modernidade.

As correntes filosóficas dominantes entre nós nos meados do século XVIII podem agrupar-se na classificação de Fr. Fortunato de Bréscia (a Brixia), ou sejam a senta scholastica, a seca recentiorum e a secta eclectica, que se tornou trivial, se é que já o não era, ou, com mais propriedade e sabor nacional, na seguinte discriminação de um dos contendores da polémica do Verdadeiro Método de Estudar: escolásticos (aristotélicos ou peripatéticos), gassendistas (ou atomistas), toscanos (sequazes do P.e Tomás Vicente Tosca), cartesienses (isto é, cartesianos), neutonianos e filósofos experimentais, sem teorização metafísica.

Os escolásticos tinham de comum a forma de pensar, o sentido do pensamento, que ultrapassava os limites da razão, e o âmbito do pensado, no qual a crença ocupava lugar primacial e subordinante. Coincidentes em numerosos pontos, conferindo primacial importância à problemática ontológica e ao estudo da Lógica formal, distinguiam-se no entanto, em parcialidades doutrinais, que podem considerar-se em função dos votos que professavam — dominicanos, franciscanos, jesuítas, carmelitas, teatinos —, ou em função dos mestres cujas conceções tinham por normativas — S. Tomás de Aquino, Duns Escoto, John Bacon—, ou ainda pela posição que defendiam em relação a certos problemas metafísicos, em Tomistas, Escotistas e Escola Média, e relativamente a alguns problemas lógicos, em Realistas, Nominais e Integrais.

Os recentiores ou filósofos modernos, segundo Fortunato de Bréscia, seguiam a nova philosophandi via, que Galileu inaugurara; e os ecléticos, ao contrário dos escolásticos e dos novadores, que arvoravam a bandeira de uma parcialidade doutrinal, exprimiam uma atitude predominantemente pessoal. Representavam acima de tudo a atitude neutral, de quem procura a verdade onde quer que ela exista, e não um corpo de doutrina como o que Victor Cousin (1792-1867) mais tarde definiria ao conceber a sistematização filosófica como coordenação de elementos dados na diversidade da história do pensamento.

Novadores e ecléticos foram os pioneiros do pensamento moderno em Portugal.

Aparentava-os a conceção mecanicista da Natureza e tinham por si, em vez da autoridade e da tradição da Escola, os notáveis progressos científicos no domínio da Matemática e da Física e a galeria vasta de grandes nomes do Século.

Uns e outros foram os agentes mais ou menos ativos e propulsores da crítica e do desapreço da síntese escolástica e, em especial, da ontologia que Pedro da Fonseca talentosamente delineara e Francisco Suárez desenvolvera com extraordinária amplitude e profundidade, e cuja temática assinala o capítulo mais notável e original da especulação filosófica portuguesa.


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