Introdução ao ensaio filosófico sobre o entendimento humano de John Locke

Pensamentos deste alcance nunca passam despercebidos, mormente se saídos de uma pena como a do autor do Ensaio sobre o Entendimento Humano.

Com efeito, relacionada com a existência humana, a dúvida equivalia a admitir a disjuntiva do homem ser ou não ser “composto” de alma e corpo, e, consequentemente, a poder ser situado no puro plano da Natureza, como ente que se não distingue dos animais por propriedades específicas e irredutíveis mas somente pelo maior desenvolvimento de algumas virtualidades inerentes aos viventes.

Com tal pensamento Locke não teve em vista propor imediatamente a problemática relativa à existência e relação do espírito e da matéria, mas é óbvio que a dúvida, mormente se relacionada com a crítica do inatismo, abria passo à interpretação materialista. Por isso, se compreende que o pensamento expresso na página acima traduzida tivesse dado origem à primeira e à mais tenaz das controvérsias que o Ensaio de Locke suscitou e que ela se apresentasse desde logo com motivação mais teológica que filosófica. Nasceu do A discourse in Vindication of the doctrine of the Trinity, do bispo de Worcester, Edward Stillingfleet, vindo a público em 1696, continuou-se por três anos em polémica com Locke, até à morte de Stillingfleet (1699), e prolongou-se durante quase todo o século XVIII num debate que, como todos os debates em que o sentimento ocupa o primado da razão, desvirtuou rapidamente o sentido originário de Locke, que era o da avaliação da extensão ou limite do conhecimento, para adquirir a fogosidade passional das controvérsias em que são postas em jogo as condições da existência colectiva e as do próprio destino humano.

O Ensaio sobre o Entendimento Humano não teria saído da roda restrita dos filósofos se não contivesse algumas frases que pareciam bulir com as crenças religiosas e, sobretudo, se alguns espíritos fortes do século XVIII não tivessem encontrado na refutação do inatismo, na epistemologia sensista e na possibilidade metafísica da materialidade do pensamento, um arsenal de argumentos actuais e actuantes contra a Teologia.

“Esta parte da filosofia de Locke foi muito prejudicada em ter tido Hobbes por precursor, Collins por discípulo e os filósofos franceses do século XVIII por panegiristas e por sequazes”, escreveu um crítico do “filosofismo” e do enciclopedismo , e com efeito a controvérsia acerca da imaterialidade essencial ou não essencial ao pensamento arrastou a totalidade da filosofia do Ensaio para o torvelinho da paixão confessional e sectária. A par de Voltaire e de Diderot que nada viam de escandaloso na frase de Locke, não faltou em França e na Itália quem, na sequência dos teólogos anglicanos, a combatesse por herética e até denunciasse toda a filosofia de Locke como fautora de materialismo e de ateísmo.

Não se pôs em causa a fundamentação do pensamento de Locke, mas o antagonismo de irredutíveis concepções da vida e da sociedade; daí, o afinco e o alastramento pelos países ocidentais de urna controvérsia, que pelo contraste e tenacidade da opugnação é inseparável do vasto, complexo e multiforme conflito de ideias de que o século XVIII foi ator e teatro.

No que a Portugal respeita, a epistemologia de Locke mal chegou a ser transplantada e a crescença do pouco que se transplantou foi raquítica e anémica; pelo contrário, os rasgos da repulsão e da hostilidade contra a motivação materialista e ateísta que se lhe atribuía foram decididos e vigorosos, embora, alfim, não decisivos, dado que o sensismo veio a ser a filosofia dominante no trânsito do século XVIII para o século XIX.

Por duas formas eles se manifestaram: pela refutação da possibilidade da matéria ser pensante e pela intervenção do poder coercivo do Estado.

A primeira forma foi desenvolvida por Fr. José Mayne na Dissertação sobre a alma racional, onde se mostrão os solidos fundamentos da sua immortalidade, e se refutão os erros dos materialistas antigos e modernos ... (Lisboa, 1778) e fez-se ouvir, anos depois, na voz de Francisco José da Costa, no Discurso sobre o ponto se à materia repugna o pensar ?, dado para a sessão de 15 de Janeiro de 1786 da Academia dos Obsequiosos, de Sacavém, e numa das teses defendidas em 1792 no convento de Santo António de Ferreirim”. Todos se propuseram refutar a tese da possível materialidade do pensamento, que atribuem a Locke, mas enquanto Francisco José da Costa teve em vista provar que «I, A matéria não pode ser essencialmente cogitante” e “II, não pode tornar-se cogitante por disposição das partes”, Fr. José Mayne fez como que um requisitório contra as doutrinas que, “com fundamentos indutivos”, usam “um método caviloso, arrogante e cheio de confusões”, e contra os “homens perversos” que desenterraram “o monstruoso erro do materialismo” por falta de “eficaz vigilância capaz de impedir a introdução do mortífero contágio no reino”.

A segunda forma, que se manifestou por intermédio da Real Mesa Censória, não foi teórica, nem podia sê-lo pela índole da constituição deste organismo e pela estrutura da concepção pombalina, do Estado que somente deixava aos súbditos “o recurso do sofrimento” contra os arbítrios da omnipotência governamental.

Essencialmente vigilante e policial, exerceu-se contra o Ensaio sobre o Entendimento Humano, de Locke, pelas duas maneiras que podiam impedir-lhe a divulgação: primeiramente, em 16 de Junho de 1768, proibindo a venda do texto, no original ou em tradução, e prescrevendo que “o livreiro a quem se permitir a tenha com a cautela que se lhe declarar e só a possa vender a quem tiver licença deste Tribunal para a poder ler”; e mais tarde em 1790, denegando autorização para ser impresso um resumo dos dois primeiros livros, que é o texto adiante publicado.

A proibição de venda deu ensejo ao mais interessante debate até hoje produzido na nossa língua sobre o Ensaio de Locke e foi resultado de uma consulta à Real Mesa Censória, na qual se pronunciaram os censores Fr. Francisco de S. Bento, P.e António Pereira de Figueiredo e Fr. Inácio de S. Caetano.

Os três pareceres, que adiante publicamos em apêndice (c), têm de comum o facto de considerarem as censuras principais que os teólogos anglicanos e católicos comummente dirigiam à filosofia de Locke depois de Stillingfleet; de sorte que o Ensaio foi examinado, não em si mesmo, na sua construtura e na sua epistemologia, mas nas consequências que se lhe atribuíam.

Fr. Francisco de S. Bento pronunciou-se pela liberdade de leitura do Ensaio, fundando o parecer na circunstância de não ter por exactas as censuras que se dirigiam a Locke de ser determinista e materialista e de favorecer o ateísmo. A sua opinião revela um espírito equânime e consciencioso, que procurou fazer juízo por si mesmo, pela leitura direta do Ensaio, ou mais propriamente das páginas em causa, sem se deixar arrastar por opiniões preconcebidas.

Alguns dos seus períodos reproduzem com fidelidade expressões de Locke, cuja atitude mental e cujas opiniões religiosas foram compreendidas e até, de certo modo, justificadas, pela coerência com o pensamento filosófico a que se articulavam.

Este censor leu o Ensaio e examinou as censuras que se lhe dirigiam à luz da própria filosofia de Locke; António Pereira de Figueiredo, e com ele Fr. Inácio de S. Caetano, leram-no como funcionários obedientes à letra e ao espírito do regimento da Real Mesa Censória. Daí, a divergência dos respectivos pareceres. Lido e compreendido por si mesmo, o Ensaio justificava que no plano lógico, como advertia Fr. Francisco de S. Bento, o conhecimento evidente da percepção da conveniência entre duas ideias fosse mais certo que o da Fé, sem que por tal se afectasse a credibilidade da Revelação —, o que Locke aliás procurou fundamentar no Essay on the Reasonableness of Christianity as delivered in the Scriptures (1695), traduzido em francês por Coste sob o título Le Christianisme raisonable (1696 e 1703), mostrando que de todas as religiões é a cristã a que mais cabalmente se concilia com a razão. A intenção de Locke, porém, não evitou que o seu pensamento fosse interpretado e utilizado no sentido do deísmo e até do ateísmo —, donde a alternativa do Ensaio ser considerado, por uns, em si mesmo, e por outros, nas derivações e possíveis implicações. Foi neste último ponto de vista que se colocou António Pereira de Figueiredo (1725-1797).


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