Introdução ao ensaio filosófico sobre o entendimento humano de John Locke

No seu parecer, o erudito autor da Tentativa Teológica (1766) tomou por critério a regra 14 do regimento da Mesa, a qual expressamente estabelecia que nunca seriam “demasiadas” as “diligências” no sentido de se impedir a divulgação de escritos filosóficos que ou conduzem “ao Pirronismo e à impiedade” ou pretendem “reduzir a omnipotência divina e os seus mistérios e prodígios à limitada esfera do entendimento humano”. Consequentemente, entendeu que lhe cumpria ler o Ensaio principalmente à luz dos efeitos e das ilações que dele se podiam tirar, e a esta luz o resultado foi o seguinte: “não posso de modo algum concordar com o R.me P.e M.1o Snr. F. Francisco de S. Bento, em que se deixe correr esta obra”.

Como teólogo, Pereira de Figueiredo observava que se opunham aos ensinamentos da Escritura: a crítica do inatismo das ideias, a qual era “destrutiva de toda a Moral Evangélica”, a concepção de que a liberdade se não dá na vontade mas na faculdade de pensar ou não pensar, o que é contrário à liberdade inerente à vontade afirmada na Sacra pagina, nos Concílios e pelos Padres, e as opiniões de “que a nenhuma coisa nos revelou ou pode Deus revelar, da qual nós não tenhamos já de antes a ideia do que são” e de que a conexão evidente das ideias é mais certa do que o conhecimento dos objectos da Revelação, as quais não podem “deixar de vacilar a Religião”; e como defensor da ordem intelectual e moral, a discordância do teólogo volvia-se em repulsa e condenação por notar a existência de juízos como o de Sherlock, que afirmara que a concepção da origem empírica das ideias favoreceu o ateísmo, e por verificar que a lição do Ensaio era tida por “tantos Católicos e Protestantes hábeis e judiciosos ... por suspeita e perniciosa”, o que deu causa a ter sido posto no Index, e que “em Roma, em França, em Alemanha, está mal reputado ou ao menos anda mordido este Livro por Católicos e por Hereges”.

O parecer de Fr. Francisco de S. Caetano não tem originalidade e nem mostra, sequer, o conhecimento direto das páginas do Ensaio que suscitaram mais críticas e impugnações. Colocado perante dois pareceres opostos, decidiu-se, no fundo, pelo de Pereira de Figueiredo, opinando que o Ensaio não devia correr “porque é mui perigosa a sua doutrina”, e que a aquisição de exemplares somente devia ser consentida “a quem tiver licença da Mesa para a ler e que não tenha perigo de sedução”.

Na justificação do parecer, como que se limitou à citação da opinião de dois críticos franceses de Locke e a repetir a consabida acusação dele ser “fautor do Materialismo, pois é certo que ele é o mais acérrimo defensor do Tolerantismo ... e bem se sabe que quem aprova todas as religiões não crê nem faz apreço de alguma”.

No parecer dos censores como nas páginas dos críticos e adversários que referimos não se impugnou diretamente o filósofo nem se examinou o fundamento das suas concepções epistemológicas. Viu-se alarmadamente no Ensaio a expressão de uma filosofia que pela exclusão do não-sensível da esfera própria do conhecimento situava na irrealidade quimérica todos os problemas relativos ao supra-sensível, designadamente sobre Deus, a natureza e destino da alma, e a temática metafísica acerca do ser enquanto ser.

A máquina de guerra que o livre-pensamento e o reformismo social do século XVIII assestaram contra as ideias e crenças tradicionais fora construída com algumas peças inventadas por Locke; daí, o Ensaio ser combatido pela atitude mental que separava a Filosofia da Teologia e pelos pressupostos epistemológicos que poderiam conduzir à incredulidade e pareciam ser — e foram — uma das fontes do enciclopedismo e, sobretudo, do que por então se chamava o “filosofismo”.

A hostilidade oficial manteve-se durante toda a segunda metade do século XVIII. É disso prova manifesta a recusa de imprimatur que a Mesa Censória resolveu em 22 de Outubro de 1790 relativamente ao manuscrito do resumo do Ensaio Filosófico sobre o Entendimento Humano, de Locke, que, como acima dissemos, foi escrito com os olhos postos no Abridgement of Locke's Essay on the human Understanding, de John Wynne. Ignoramos os fundamentos da resolução, que talvez se conservem no espólio documental da Mesa, e também não sabemos se o autor do manuscrito, cujo nome é desconhecido, apresentou o resumo dos quatro livros ou somente os dos dois primeiros, que é o texto que adiante publicamos.

O facto da recusa é de per si eloquente, mas — ironia do destino das ideias que têm por si o futuro ! — enquanto por um lado se proibia a venda e a divulgação do pensamento direto do Ensaio, por outro ordenava-se oficialmente a adopção do compêndio de Genovesi (Genuense), cujo empirismo mitigado fazia largas concessões a Locke, e os fundamentos epistemológicos do Ensaio, designadamente a crítica do inatismo das ideias e a origem empírica dos conhecimentos, tornavam-se lugar comum da filosofia acreditada e defendida em teses de escolas conventuais. O sensismo, o psicologismo e o gramaticalismo lógico que se tornaram entre nós pilares da filosofia no primeiro quartel do século XIX, procedem de Condillac e dos Ideólogos, mas o seu êxito não se compreende sem a lavra funda com que o empirismo do Ensaio sobre o Entendimento Humano, de Locke, revolveu o terreno em que enraizaram as concepções escolásticas da Ontologia, do formalismo dialéctico e da explicabilidade do Mundo natural.

Coimbra, Julho de 1950               


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