Introdução ao ensaio filosófico sobre o entendimento humano de John Locke

Daqui, a exposição larga que a teoria normalmente ocupa nos Novato rum Atomistarum in Academia Duacena; sicut nec in omnibus Academiis sapientissimae Hispaniae, Italiae, Germaniae, et novissima haec inclyta Conimbric. Academia etiam prohibuit, quod nemo in illa sequatur talem sententiam (p. 12).

Como região espiritual da Contra-Reforma, a oposição ao cartesianismo teve em Portugal o apoio oficial.

Pelos anos em que foi escrita a Refutatio, prevalecia ainda no ensino das Artes, isto é, da Filosofia, a oposição ao «atomismo», entendido no sentido largo em que Carneiro de Figueiroa o entendia. Assim, como ele próprio informa, o beneditino João Baptista teve os atomistas por hereges, tanto numa Física que escreveu corno em duas sustentações de teses, uma delas em Coimbra, na de José Leonardo, no Colégio das Artes, em 1748, e desta opinião partilhavam os oratorianos José Martins, Gabriel Talbot e Júlio Francisco; e o padre António Cordeiro, jesuíta, que «admitira em parte o atomismo», fora obrigado a retratar-se, como já acima dissemos.

O ensino da Filosofia exercia-se em condições de prevenção contra possíveis contaminações do pensamento dos innovatores; assim, em 1712, uma provisão régia determinou que nas cadeiras de Filosofia do Colégio das Artes de Coimbra se não adotasse «outra forma de lição, da que até agora se observava e mandam os Estatutos”e em 1746, afixou-se no mesmo Colégio um Edital que proibia que «nos exames ou lições, conclusões públicas ou particulares se não ensine defensão ou opiniões novas pouco recebidas ou inúteis para o estudo das ciências maiores, como são as de René Descartes, Gasendo, Neptono (Newton) e outros, e nomeadamente qualquer ciência que defenda os atos [leia-se: átomos] de Epicuro ou negue as realidades dos acidentes eucarísticos ou outras quaisquer conclusões opostas ao sistema de Aristóteles»Foi neste ambiente que se gerou a Refutatio, cujo objetivo, como o título indica, consiste em destruir os fundamentos do atomismo, confundido, como dissemos, com o cartesianismo, e mostrar que é contrário à Fé. A sua argumentação é puramente dialética, e, em rigor, consiste em postular como fundadas algumas teses da filosofia da Escola. São as seguintes: vis agendi das causas segundas; a alma racional não procede da potentia da matéria, porque o que não existe na matéria também não pode existir na causa material, sendo de notar, a este respeito, a omissão do nome de Locke; existência das formas substanciais, dado que a matéria é secundum se invariada e persevera com todas as coisas; existência de formas substanciais distintas da matéria, sem o que se não poderia dar a geração e a corrupção dos seres; a união da matéria e da forma como modo substancial distinto da matéria e da forma que nela concorrem; realidade dos acidentes físicos como distintos das substâncias, não existência natural do vácuo, em virtude da natureza aborrecer o vazio, sem embargo do vácuo poder dar-se pela potência absoluta de Deus, e existência das qualidades como entidades distintas da substância.

Se nos detivermos um tanto sobre este assunto, que noutra oportunidade será retomado com mais amplitude, foi para mostrar que as teorias físicas de cartesianos e de atomistas se opunham mutuamente mais com interpretações abstratas que com resultados objetivos, e que a filosofia da Escola procurou contraditá-las com argumentos metafísicos de inspiração aristotélica. Compreende-se, assim, que as teorias físicas dos «inovadores”e dos escolásticos fossem postergadas e por fim superadas pelos ensinamentos do espírito prático, e que o sentido de objetividade se detivesse como que nos limites da observação e da experimentação. Daqui, duas atitudes, de algum 'modo afins, o experimentalismo e o empirismoí ou por outras palavras, a atitude que separou a explicação científica de qualquer fundamento ou objetivo mentalismo e o empirismo, ou por outras palavras, a atitude que e Newton (1646-1727), e a mentalidade filosófica que procurou levar aos problemas da origem e do fundamento das ideias e da conduta a objetividade descritiva dos anatómicos, de que John Locke (1632-1704) foi figura supremamente representativa, e, como este declara no prefácio do Ensaio sobre o Entendimento Humano, « limpar um pouco o terreno e remover uma parte das velhas ruínas que se encontram no caminho do conhecimento».

As duas atitudes tinham de comum alguns pontos de vista, especialmente o sentido assistemático, mas não se confundiam.

Como acima dissemos, o experimentalismo está essencialmente ligado à introdução da metodologia e da prática de observação e de experimentação e à representação científico-natural do Mundo. Como atitude metodológica, foi designada — e ridiculizada — por «Física Experimental», significando latamente a designação as aplicações do espírito de observação e de experimentação, especialmente na Ótica e na Mecânica, e a associação do cálculo aos dados da experiência. Daqui, uma projeção doutrinal, que pode sintetizar-se na teoria física quantitativa, na conceção do mecanicismo da Natureza, na exclusão das causas formal e final do quadro explicativo, numa palavra, na Ciência entendida como descrição exata.

O empirismo, entendendo por tal, de modo geral, a atitude que vincula a reflexão filosófica ao concurso direto dos dados da experiência, exprimiu-se moderadamente e em forma típica, ou seja, respetivamente, o ecletismo e o empirismo epistemológico, propriamente dito e procedente do pensamento de Locke. Consideremos separadamente as duas atitudes empiristas.

O ecletismo é por natureza uma atitude de moderação e de equilíbrio. É a sua constante intelectual, mas o espírito eclético apresenta-se com diversidade de incidências e de manifestações no decurso do tempo.

Na época que nos ocupa, pelos meados do século XVIII, houve duas maneiras de ser eclético.

A primeira, procurou conciliar por mútuas concessões a tradição filosófica da Escolástica com algumas inovações do pensamento moderno. São ecléticos desta maneira os adeptos ou sequazes do oratoriano de Valência, Tomás Vicente Tosca, que entre nós alcançou larga aceitação. O seu ecletismo consistiu fundamentalmente na admissão dos resultados da Física moderna e na simplificação da problemática tradicional da Ontologia, pelo que, não sem acerto, Verney os designou de «meio-modernos» e não sem motivo sofreram a repulsa dos dois campos adversários.

A segunda teve outra significação. O seu objetivo não consistiu em estabelecer a ponte entre a temática escolástica e a temática moderna e em conciliar o inconciliável, ou seja o lugar de coincidência de duas atitudes mentais irredutíveis. Desprendida da tradição filosófica, situou-se no terreno da modernidade com a atitude da razão que se considera apta a esclarecer os problemas da fatualidade do mundo natural e os das instituições, ideias, crenças, etc., do mundo social e histórico-espiritual, sem outro apoio que não sejam a luz natural do espírito e a lição dos factos objetivamente considerados. Os ecléticos desta conformação, ou entendiam por ecletismo a livre opção de todas as doutrinas, de antigos e de modernos, que condissessem com a atualidade, como o jesuíta José de Miranda, ou entendiam a comparação das doutrinas dos mais célebres filósofos modernos, corno Fr. José de Santo Inácio, ou ainda como Jacob de Castro Sarmento (1691-1761?) e, sobretudo, Luís António Verney (1713-1792), a capacidade de filosofar espontaneamente, sem outras luzes e normas que não sejam as da razão natural e as da conexão imediata e direta da reflexão com os resultados da indagação científica, seja qual for a região onde se verifiquem.


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