Introdução ao ensaio filosófico sobre o entendimento humano de John Locke

Contrariamente à tradição aristotélica, que tinha por soberana a Metafísica, isto é, a teoria do ser e da razão de ser, Verney afirmava no Verdadeiro Método (carta X) que «a principal parte da Filosofia... é a Física, visto que a Lógica parece ser somente uma disposição do entendimento para conhecer as coisas como são», acrescentando que entendia por Física «o conhecimento da natureza de todas as coisas, o que se alcança por meio das suas propriedades e da redução aos próprios princípios.»

Identificando o pensar filosófico com o explicar — «saber qual é a verdadeira causa que faz subir a água na seringa é filosofia; conhecer a verdadeira causa por que a pólvora acesa em uma mina despedaça um grande penhasco é filosofia”, escreveu ainda o autor do Verdadeiro Método — satisfaziam-se com explicações fragmentárias. A desagregação e ruína da velha e tenaz sistematização aristotélica, cujas explicações científicas se tornaram em grande parte inexatas, cujas conceções metafísicas eram incompatíveis com a interpretação mecanicista da Natureza, cujo vocabulário se não adequava à linguagem dos números e das fórmulas da Ciência moderna, fizera-lhes perder a confiança na legitimidade de uma nova sistematização; por isso, tiveram por certo que havia findado a era dos grandes sistemas, isto é, da Filosofia tecnicamente concebida e disposta em sistema, fosse escolástico, cartesiano, gassendista ou qualquer outro, e que as deduções sistemáticas não passavam de logomaquias e de quimeras da imaginação.

Jacob de Castro Sarmento e Luís António Verney representam ostensiva e militantemente esta atitude mental, que não separa a reflexão filosófica do processo constitutivo das Ciências exatas, da História, do Direito, ou mais propriamente da Jurisprudência, da teoria do Estado e da atividade social, porque é ao contato dele que a Filosofia cobra alento criador e razão de ser para as generalizações e para os imperativos da ação.

Castro Sarmento, que entre nós foi o descobridor da Inglaterra como país pensante científica e filosoficamente, exprimiu tendencialmente esta atitude em 1731, no Preliminar com que apresentou a sua tradução das Propoziçoens para imprimir as Obras Philosophicas de Francisco Baconio e explicitamente na Teorica verdadeira das marés conforme a philosophia do incomparavel Cavalheiro Isaac Newton, em 1737, ao perguntar, no prólogo ao leitor, se não seria preferível « para o                particular e para o publico, que a agudeza dos nossos grandes genios se empregasse em huma Philosophia, que mostra aos olhos, o que dicta aos ouvidos... do que fatigar-se, e consumir-se com uma continuada, e inutil controversia de Utrum detur ens rationis, Universale a parte rei, e outras Fábulas desta casta, de que se compoem, e está chea a Aristotelica, indignas do juizo, e attençam humana”.

Revelar um filósofo como Bacon equivalia a dar a conhecer o pensamento de um país intelectualmente pouco conhecido, e sobretudo constituía uma maneira de opor a filosofia inglesa ao sistema de ideias que se ensinavam tradicionalmente nas nossas escolas. Compreende-se, por isso, o insucesso da tentativa de Castro Sarmento, como se compreende também que nas consciências mais despertas se afervorasse o intento de modificar a situação cultural pela atualização do ensino, senão, com vistas mais largas, pela reforma da mentalidade. O predomínio da formação literária e dialética em detrimento da formação científica, a didática da Lógica com feição dialética e verbalista em vez do estudo da metodologia atinente às Ciências exatas, a desatualização do plano de estudos e a dos temas e problemas que normalmente se versavam nas escolas e fora delas, numa palavra a insuficiência e o anacronismo do que se ensinava à juventude e do que ocupava o comum dos mestres, justificavam de sobra os desígnios reformadores, tanto mais que em toda a Europa se fazia ouvir a voz possante da modernidade, inclusivamente na Espanha com os juízos e digressões do Teatro Crítico Universal (1726-1741) e das Cartas Eruditas (1742-1760) de Fr. Benito Jerónimo Feijoo (1676-1764) e com a compreensão tolerante, designadamente em relação ao atomismo de Gassendi, de que o oratoriano de Valência Tomás Vicente Tosca (1651-1723) dera mostra no divulgado Compendium Philosophiae (Valência, 1721).

Na tentativa de Castro Sarmento não pulsava apenas o anelo de uma consciência; por isso, o que ele tentou acanhadamente e sem êxito alcançou-o duas décadas mais tarde Luís António Verney, em tempos mais propícios e, sobretudo, pela capacidade do talento, que soube despertar emoções onde outros somente seriam capazes de severos apelos de fria natureza intelectual.

Filho espiritual da Itália do Vico (1668-1744) que escrevera o De nostri temporis studiorum ratione (1709) e nos Principii di una scienza nuova (1725) desenvolvera uma filosofia antitética do cartesianismo, do Muratori (1672-1750) que dissertara com ânimo de reformador acerca Della publica felicità oggetto de buoni principi (1749), e do Genovesi (1712-1769) filósofo do empirismo mitigado, cujo compêndio Pombal faria adotar com expurgação de alusões a Aristóteles, como Castro Sarmento o era da Inglaterra que se revia na obra de Newton e na frutificação da sementeira de Bacon, Verney apresentava-se ostensivamente como filósofo militante contra o escolasticismo, em nome do ecletismo do bom senso e da necessidade pública da juventude ser ensinada no conhecimento dos resultados científicos da modernidade e, sobretudo, da metodologia e da atitude mental que os tornaram possíveis. A sua atividade de pensador militante não se compreende sem a confiança na capacidade omnímoda da Razão e no universalismo da Cultura e não se explica sem o entusiasmo do doutrinador, cuja mente se indignou com a ação retardadora e com o conteúdo anacrónico do ensino oficial e cuja pena se não cansou em derramar conhecimentos tidos por benéficos.

Vivendo largos anos na Itália (1736-1792), pensou e escreveu para os Portugueses, mas o seu espírito estava distante do particularismo cultural nacional e da subjetividade da atividade intelectual, que serão as duas grandes revelações dos românticos, especialmente de Garrett, a sensibilidade mais alada e a mente mais expressiva do nosso Romantismo. Como filho espiritual do século XVIII, o seu pensamento e a sua ação descansam sobre o pressuposto da unidade e da identidade da Razão em todos os tempos, lugares e circunstâncias, mas isto, que evidentemente aparenta Verney ao Iluminismo, não quer dizer que ele seja um «iluminista”no denso e pleno sentido da palavra, mormente com o significado que a «filosofia das luzes”teve em França.

Deixando para outra oportunidade a apreciação deste complexo problema, que no fundo consiste em determinar a índole e o alcance do que Verney entendia pelo conceito de Razão, baste por agora deixar acentuado que o seu pensamento é assistemático e se baseia na íntima conexão da Filosofia e da Ciência.

A seu juízo, a Filosofia é «o conhecimento das coisas que há neste mundo e das nossas mesmas ações e modo de as regular para conseguir o seu fim», corno diz na carta oitava do Verdadeiro Método de Estudar, e este sentido racional e prático permitiu-lhe dizer noutro passo desta mesma carta, coerentemente, mas sem sombra de espírito filosófico, que «saber qual é a verdadeira causa que faz subir a água na seringa é filosofia...”


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