Introdução ao ensaio filosófico sobre o entendimento humano de John Locke

Bastam estas palavras para mostrar que o empenho de Verney consistiu em substituir a dedução silogística e o espírito de sistema pela observação e pela experimentação, ou dito de outra maneira, em converter a mente dos jovens lusitanos e a dos seus mentores ao sentido do concreto e a situar a posição da problemática filosófica no quadro limitado da explicabilidade científica.

Esta foi a ideia fundamental e orientadora de Verney no Verdadeiro Método. Como todas as ideias que pretendem abrir caminho, podia ser encarada predominantemente sob o aspecto destrutivo, isto é, de crítica da problemática tradicional da Escola, ou sob o aspeto instaurador, isto é, de fundação e de edificação. Pela índole do saber como pela propensão militante do temperamento, Verney, no Verdadeiro Método, que é a obra que exprime a tonicidade do seu pensamento vivo, é fundamentalmente crítico. Com o rubor da vergonha e com a consciência viril de quem cumpre uma boa ação decisiva, bateu-se pela renovação do plano de estudos e pela reforma da mentalidade, mas a sua razão de militante estava mais bem instruída do que devia remover-se do que do que devia fundar-se.

Sirva de prova a seguinte página, de vinco nitidamente escolástico, na forma ordenadora dos assuntos, e paradoxal num defensor da Física quantitativa, que aliás iniciava a carta X do seu livro, destinada a «mostrar que coisa é Física», com uma argumentação histórico-filológica contra as formas substanciais, o que também é profundamente revelador do verbalismo do seu saber científico e da inapreensão do alcance da conceção mecanicista da Natureza:

... Direi o que me ocorre [acerca do Curso de Física], ainda que varie alguma coisa do método da dita Física. Parece-me que é mui natural o seguinte:           

Deve o estudante começar pelos princípios universais. E primeiro, examinar a natureza da Matéria, não segundo as ideias metafísicas, mas segundo as ideias que temos daquilo, a que todos chamam Matéria ou Corpo. Depois, explica-se o que se entende por Forma, posto o que devem-se explicar as propriedades da Matéria, especialmente a divisibilidade. Tem logo lugar examinar, quais eram os princípios dos outros Filósofos, como Demócrito, Epicuro, etc., onde se examina também o Vácuo, Matéria subtil, etc., os princípios de Leibniz, Empédocles, e Químicos, etc.

Passe daqui a examinar as coisas, que convém a todos os corpos, a que chamam propriedades. Primeiro, a natureza do movimento local, suas propriedades, etc., movimentos compostos e curvas que nascem deles, movimento de gravidade, onde se examinam os princípios de Monsieur Newton, Monsieur de Mairan, e os princípios da Estática, os diversos movimentos das graves que caem, a comunicação do movimento e os princípios da Dinâmica. Segue-se examinar os movimentos dos fluidos e descobrir os princípios da Hidrostática, considerar bem os movimentos dos fluidos, tanto nos tubos como fora, sua resistência e os fenómenos que dependem da gravidade do ar.

Depois disto, examinam-se as diferentes constituições dos corpos, das quais nascem aquelas coisas que nós chamamos Sensações, a saber, corpos Cálidos, Frios, Duros, Elásticos, Fluidos, Moles, etc., Sabores, Cheiros, Sons e suas espécies, com as consonâncias musicais, etc. Particularmente se deve considerar a Luz e suas propriedades: sua refração nos vidros; reflexão nos espelhos; visão direta, reflexa, refrata e a natureza das Cores, em que há muito que dizer.

Isto posto, antes de examinar as coisas em particular, examinará o Mundo geralmente. Primeiro, a Esfera; depois os Tempos; logo diferentes sistemas, de Tolomeu, de Copérnico, as órbitas dos Planetas, e o de Tico Brahe. Vistos eles todos, deve determinar qual deles se deve abraçar, examinando fundamentalmente as razões de Newton, de Cartésio, de Leibniz. Depois trata-se das Estrelas fixas, das errantes e dos Cometas.

Segue-se o globo terrestre. E primeiro, os Meteoros húmidos, espirantes, ígneos, enfáticos. Depois o fluxo e refluxo do mar, segundo as opiniões de Galilei, Walis, Cartésio e Newton, determinando qual parece mais provável.

Depois disso, examinam-se as três espécies de corpos, que há na Terra, primeiro os Minerais, depois os Vegetais e em terceiro lugar os Animais brutos. Depois o Homem, considerado primeiro segundo os órgãos e máquina do corpo, que é a Anatomia, depois segundo a origem das paixões e força da imaginação. Mas nestas duas partes de Vegetais e Animais é necessário ter grande advertência de se conformar em tudo e por tudo com as experiências modernas, porque os Antigos ignoravam algumas destas coisas.

Parece-me que esta ordem de compreender a Física é natural. Não condenarei, porém, quem a não seguir em tudo, mas quiser seguir a ordem do Tosca ou do Purcócio 45, contanto que não lhes siga as opiniões, pois como disse, aqueles livros e outros semelhantes são os que não devem estudar os rapazes, pois têm mil suposições falsas e ensinam muito mau gosto de Filosofia.

Este esquema de um curso elementar de Física moderna visava diretamente o ensino dos Colégios da Companhia de Jesus. Sob o ponto da matéria, era, na verdade, relativamente atual; porém, sob o ponto de vista didático e principalmente pela atitude mental que lhe subjaz, mostra ainda vincos da mentalidade escolástica. É que a Verney, como acima dissemos, representou-se melhor e mais claramente o que devia suprimir-se no quadro dos estudos do que o que devia ser estabelecido de novo. A sua alma de pedagogo nutriu-se mais de Erudição do que de Ciência e de Filosofia, e a repulsa da sistematização escolástica levou-o a identificar a teorização filosófica com a explicação científica e a desvirtuar toda e qualquer construção filosófica, — como se fosse possível filosofar sem inquirição problemática ou sem intenção sistemática, o que aliás não quer dizer que somente no traçado de um sistema se dê a Filosofia.

Daí, a sua incompreensão do espírito da Filosofia moderna e o louvor da moderação em aventurar ideias, que Newton exprimiu consabida declaração Hypotheses non fingo, ao ponto de destruir o próprio pensar filosófico: «Este é o sistema moderno, não ter sistema, e só assim é que se tem descoberto alguma verdade”.

Normalmente, uma sistematização filosófica recorre à polémica, ou vê-se envolvida nela, na época do aparecimento e na fase da decrepitude.

Quando Pedro da Fonseca lançou entre nós as bases da Ontologia em que se firmaria a Metafísica da Segunda Escolástica, o seu esforço gigantesco parece ter conhecido somente incitações e aplausos.

Não assim na agonia por que passou a herança filosófica dos Conimbricenses nos meados do século XVIII. A retumbância dos clamores, a vivacidade dos protestos e os rios de tinta que o Verdadeiro, Método de Estudar fez correr, mostram claramente que a Escolástica se não deu por morta e que o sentido geral das orientações filosóficas se tornara assunto de discussão pública e objecto de parcialidades. Sob certo ponto de vista, o Verdadeiro Método é o primeiro apelo dirigido à opinião pública e à reflexão do leitor anónimo. Verney pôde escrevê-lo por sentir que interpretava o enfastiamento geral pelo ensino oficial e a sensação de desterro intelectual que pungia a mente de alguns dos melhores, e ainda porque se apresentava filosoficamente comedido  e moderado. A sua atitude de filósofo consistiu em proclamar que não tinha Filosofia, quer se entenda por esta palavra a ordenação em sistema de um conjunto de pensamentos relacionados entre si com travação lógica, quer o desabrochamento da problematicidade, isto é, a transformação em problema do que passa despercebido ou se dá como indubitado. Por isso, as correntes do século que opunham à sistematização escolástica outra sistematização, como o cartesianismo, ou lhe destruíam os fundamentos teoréticos, como o empirismo de Locke, não puderam fazer-se ouvir em voz alta, e só velada e fragmentariamente deram sinal da sua pálida existência.


?>
Vamos corrigir esse problema