Introdução ao ensaio filosófico sobre o entendimento humano de John Locke

Poucos livros de filósofos setecentistas alcançaram a divulgação do Essay. Somente no decurso de um século (1690-1793), dezanove edições inglesas; nove edições da tradução francesa de Caste, saída a público pela primeira vez em 1700 e feita sob a vista de Locke; três traduções latinas, das quais sobressai a de Thièle (1731), sem embargo da primeira, de Burridge (1701) ter tido a aprovação de Locke; três traduções alemãs, respectivamente de Poleyen (1757), de Tittel (1791) e de Tennemann (1797). A lista é significativa, e mais significativa se torna quando se atenta no resumo feito por John Wynne (1667-1743), bispo de Santo Asafo e principal do Jesus College, de Oxford, para uso de estudantes e em substituição de compêndios da Lógica tradicional; saído a público em 1696 com o título de Abridgement of Locke's Essay on the human understanding e reeditado em 1700, 1731, 1752 e 1770, foi traduzido em francês por Bossuet (Londres, 1720) e em italiano por Francesco Soave (Milão, 1775).

País algum se furtou à influência deste livro, que é um dos monumentos do pensamento filosófico do seu século, a par do Novum organum scientiarum (1620) de Bacon, das Meditationes de prima philosophiae (1641), de Descartes, do Leviathan (1651), de Hobbes, do De la recherche de la vérité (1674-5), de Malebranche, da Ethica (1677), de Espinosa, do Discours de Métaphysique (1686), de Leibniz. Não é conhecida a existência de uma tradução na nossa língua, sequer à semelhança da que Jacob de Castro Sarmento tentou (se este é o termo próprio) para a obra de Francis Bacon, mas o que o original de Locke não alcançou, logrou-o o Abridgement de John Wynne, que foi o «guia”da tradução adiante publicada, na parte que até nós chegou. Não obstante, o Essay forneceu o arsenal das ideias que mais abundantemente abasteceram a contenda anti-escolástica. Fossem colhidas diretamente, nas páginas originais e, sobretudo, nas da tradução francesa de Coste, ou indiretamente, na obra de filósofos sensistas como Condillac, notadamente no Essai sur Forigine des connaissances humaines (1749), e na de autores de manuais e de compêndios, a concepção do Mundo e a explicação da atividade do espírito, que se opunham às da Escolástica, procediam das teorias de Locke acerca da origem das ideias, respectiva formação e classificação, da sua crítica aos « universais” e à categoria da substância, numa palavra, tudo o que preparou e fundamentou o seu nominalismo. Com a desafectada simplicidade do bom senso, Locke opunha à atitude mental, à temática e às soluções filosóficas tradicionais um encadeamento de pensamentos, que não tinham a profundidade e a finura dos de Descartes mas que pareciam coerentes com o que cada um podia observar em si mesmo e com os progressos científicos. No fundo, constituíam um tratado de ideologia, no sentido que esta palavra teve no final do século XVIII, pois os quatro livros que formam o Ensaio sobre o Entendimento Humano ocupam-se, sucessivamente, Das noções inatas, Das ideias, Das palavras e Do conhecimento.

A construção de Locke assenta fundamentalmente na concepção da origem empírica de todos os conhecimentos, que ou provêm do mundo externo, e então são apreendidos pelas sensações, ou do mundo subjectivo, e neste caso são dados pela «reflexão». Sensação e reflexão são, pois, as únicas fontes do conhecimento; daqui, a inexistência de ideias ou de princípios inatos, incluindo a própria ideia de Deus, a impossibilidade de todo e qualquer conhecimento que não provenha da experiência e a legitimidade da observação, da experimentação e da indução como métodos fundamentais.

Ë princípio fundamental da teoria que a alma não pensa sempre e não pode pensar sem as ideias que a sensação e a reflexão lhe fornecem. Daí, o esforço, desenvolvido ao longo de dois livros do Ensaio, no sentido de reduzir a ideias claras e distintas as noções mais complexas e de descrever as faculdades do espírito, os caracteres e as leis da linguagem como expressão do pensamento.

Nesta epistemologia do senso comum, a experiência não só assinala a origem dos conhecimentos, senão que marca os limites da explicabilidade, visto privar de consistência, e portanto de legitimidade, os problemas relativos à substância, à essência das coisas e à objectividade das espécies.

Locke propusera-se acima de tudo inquirir das possibilidades e limites do conhecimento, pelo que orientou a meditação no sentido da determinação das condições psicológicas da origem, formação e caracteres das ideias e das relações lógicas entre o pensamento e a linguagem.

Na marcha do seu pensamento pode, pois, distinguir-se a fundamentação e a dedução das consequências relativamente à filosofia tradicional. São estas que diretamente importam ao processo dissolutivo da filosofia tradicional, dado que os problemas ontológicos da Escolástica deixavam de ter fundamento e razão de ser e grande parte dos temas da Lógica tradicional também perdiam interesse. Assim, o oratoriano António Alvares declarava no « prólogo” da sua Instrução sobre a Lógica ou Diálogos sobre a Filosofia Racional (Porto, 1760) que o « instituto” da Lógica escolástica, « que ocupava as aulas nos séculos passados e ainda hoje tem entrada em muitas escolas do nosso reino”, « são entes de razão, primeiras e segundas intenções, conceitos objetivos, proemiais, universais, sinais e outros tratados deste género próprios para perturbar a nossa mente e diminuir o nosso engenho”. Por isso, se propunha expor « a mesma Lógica, que no passado e presente século seguiram homens de grande merecimento na República Literária; a mesma com que fizeram agigantados progressos Francis Bacon, René Descartes, Pierre Gassendi, John Locke, o autor da Arte de Pensar, Marioto, António Genuense, e infinitos outros, que desterraram das Escolas as monstruosas quimeras dos Antigos e admitiram em seu lugar um novo corpo de doutrina, próprio para guiar o nosso entendimento pelo caminho da verdade».

Locke aparecia, pois, a par dos grandes instauradores da Lógica moderna, mas é em temas particularizados que se encontra a influência mais ou menos direta do pensamento próprio do Ensaio sobre o Entendimento Humano.

De modo geral, a epistemologia do Ensaio e, de modo particular, algumas afirmações concretas, desentranhavam implicações dificultosas, ou mais propriamente desastrosas, para o idealismo platonizante derivado da Escola de Cambridge, para a metafísica de Descartes e de Malebranche, para a ontologia escolástica e para a teologia dogmática; por isso, a par das críticas de estrutura filosófica, nas quais avultam os Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano de Leibniz, o livro de Locke deu também ensejo a numerosas censuras de carácter ou de intenção teológica. Iniciou-as, de algum modo, o idealista John Norris dois meses após a saída do Ensaio com a carta sobre Some cursory Reflexions upon a book called An Essay concerning Human Understanding publicada em apêndice ao Christian Blessedness or Discourses upon the Beatitudes (Londres, 1690), na qual, dentre outras objecções, acentuava que a afirmação da origem empírica de todas as ideias implicava a inexistência da ideia de Deus, visto dela não haver conhecimento por experiência direta.

Esta crítica, que é cronologicamente a primeira, ficou como que apagada perante a de Stillingfleet, capelão de Carlos II e bispo de Worcester, cujo livro contra « Unitários” e Deístas, A discourse in Vindication of the doctrine of the Trinity (1696), abriu uma prolongada polémica, dando ensejo a que Locke precisasse e desenvolvesse algumas ideias que expusera no Ensaio e a que tomasse vulto e consistência a oposição e a controvérsia teológica.


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