Saber e filosofar

Do primeiro é exemplo supremamente representativo e frisante o passo dos Princípios de Filosofia (carta ao tradutor), em que diz que “toda a Filosofia é como uma árvore, cujas raízes são a Metafísica, o tronco, a Física, e os ramos que saem do tronco são todas as outras ciências, que se reduzem a três principais, a saber, a Medicina, a Mecânica e a Moral”.

No âmago desta concepção subjaz a visão do Mundo como conjunto de formas e de manifestações que mutuamente se implicam, na qual a conexão lógica das ideias é subentendida como expressão real das próprias coisas.

Descartes não coincidia completamente com Aristóteles, porque o seu fito era a unidade do saber, isto é, um saber que, sob certo ponto de vista, tivesse a universalidade e a necessidade dos princípios filosóficos, e sob outro, a exactidão e o rigor dos conhecimentos matemáticos. Descartes somente reconheceu como científicas as disciplinas que se conformassem ao tipo do saber matemático, pelo que pôde dizer com coerência lógica mas com inconsistência real, que a sua “Física era geometria” e desarreigar da consideração filosófica, e portanto científica, por vácuas e inúteis, concepções tradicionais, designadamente a teoria da matéria e da forma.

A filosofia cartesiana não se compreende cabalmente sem a representação da metafísica aristotélico-escolástica que o genial pensador das Meditações Metafísicas quis substituir, mas no âmago da sua concepção da univocidade do saber filosófico e do saber científico encontra-se o mesmo ideal de explicação que configurou a teoria aristotélica da Ciência. É que para Aristóteles como para Descartes, quaisquer que sejam as irredutibilidades e diferenças que os separam na concepção da realidade física, a Ciência somente se obtém por via demonstrativa e, sobretudo, tem por objecto a investigação das essências nas quais se inserem de maneira necessária as propriedades apreendidas pelos sentidos. O conjunto do saber coincide com os objectos ontológicos da Filosofia, e os saberes, qualquer que seja o seu conteúdo, alcançam-se somente mediante um único tipo de explicação, coerente com um só nível de inteligibilidade.

Os conhecimentos podem distinguir-se, e Descartes claramente os distinguiu na sua árvore do saber, mas a distinção dá-se dentro da mesma árvore e a partir da raiz comum, que é a Filosofia ou a Metafísica, por forma que, em rigor, não há lugar para quaisquer conhecimentos ou ciências autónomas. Pode discutir-se se Descartes concebeu a Metafísica como garantia da Física e se a sua Física é ou não corolário da sua Metafísica, mas temos por sem dúvida que a Física e a Metafísica mantinham a seu juízo tão estreita relação que pode falar-se na existência de uma “filosofia primeira” e de conhecimentos coordenados acerca da Natureza, dos seres vivos, etc., mas não em Ciências autónomas, isto é, que nasçam e se desenvolvam fora dos “primeiros princípios” da Filosofia.

Esta concepção fita os olhos no ideal de uma ciência a priori, dedutiva e necessária, cujo paradigma fosse o saber matemático, excluindo do ideal científico as séries de conhecimentos que se não conformem com ele.

Ora a Filosofia assim entendida é essencialmente sistema, tornando-se o sistema tanto mais perfeito quanto mais clara e extensamente mostrar que tudo se explica e desenvolve a partir de um princípio de universal significado. O idealismo alemão pós-kantiano deu expressão imorredoira a esta concepção do filosofar, na qual a discursividade do pensamento se esquematiza em conceitos que não só temporalizam como se sensibilizam, isto é, desentranha do princípio fundamental tomado como ponto de partida os pensamentos e realidades que ele contém, possibilita ou implica.

Fichte foi o genial iniciador desta atitude, ao eliminar a coisa em si, ou por outras palavras, a distinção kantiana do Mundo como nuómeno (os objectos em si) e como fenómeno (os objectos enquanto percebidos).

Cortando o derradeiro elo que ligara a Crítica da Razão Pura ao realismo do ser, o filósofo da Doutrina da Ciência desprovia de sentido a síntese a priori de Kant, substituindo-a pela síntese criadora, na qual o pensamento é simultaneamente agente e produto da acção, isto é, em que a atividade cognoscente não só concorre com a forma senão que estabelece o próprio objecto do conhecimento: o eu põe o não-eu.

Daqui o rasgo audacíssimo da substituição da tradicional metafísica do ser, isto é, a afirmação de que tudo é dado, assim o mundo das coisas como o espírito de que somos conscientes, pela metafísica da acção, a qual concebe o ser como produzido pelo pensamento mediante a negação de si mesmo, dado que a negação do eu é o não-eu, isto é, a Natureza.

Coerente com esta metafísica, Fichte não só identificou a Doutrina da Ciência com a Filosofia, senão que lhe atribuiu como objecto a dedução do ser real. Não chegou, contudo, a ocupar-se propriamente do saber científico, mas deixou bem expresso o intento de mostrar, “por estranho que pareça”, que é possível “provar-se rigorosamente” que são deduzíveis, “anteriormente a qualquer observação, do princípio fundamental de todo o saber humano”, as leis naturais, desde as que respeitam à estrutura da mais insignificante hástea de erva até às que exprimem o movimento dos corpos celestes, e que o estudioso da Natureza julga alcançar mediante a observação. (Sobre o conceito da Doutrina da Ciência ou da assim chamada Filosofia, séc. II, § 5 n.).

O que Fichte não fez, por se haver ocupado somente na dedução das primeiras categorias, levou-o a cabo Hegel no mais audaz cometimento que o pan-filosofismo até hoje empreendeu. Mais penetrado, porventura, do que Espinosa, da identidade essencial da razão e da realidade, postulando que o princípio do ser é a Ideia, isto é, a racionalidade, a ordem e a finalidade na sua intrínseca capacidade geradora, que a Natureza é «a Ideia na forma do ser outro'> e que a realidade é a síntese dialéctica concreta do idêntico e do diverso, Hegel empreendeu o que ainda ninguém havia tentado com tamanho desenvolvimento: a dedução especificada, segundo o esquema triádico, dos objectos das diversas ciências e determinações do Mundo natural. Assim, a Natureza especifica-se em mecânica, física e orgânica; a mecânica, em matemática, finita e absoluta; a física, em física da individualidade essencial, particular e total; a orgânica, em geológica, vegetal e animal. Sem se deter na via da dedução, Hegel chega a deduzir o Sol, a Lua, os planetas e as três leis de Kepler, o fogo e a água, o som e o calor, a electricidade e o magnetismo, o mar e o ar, a formação dos sais e a maturação das sementes, os terrenos de aluvião e o sistema nervoso (Enciclopédia das Ciências Filosóficas, p. 11).

Empreendimento de admirável audácia na racionalização do processo do produzir-se da Natureza, foi ao mesmo tempo um empreendimento contraproducente, se se não preferir dizer com Harald Hoffding que ele constitui “a parte vergonhosa” do sistema hegeliano.

Bastam estas sumárias indicações para se apreender a característica da concepção que nos ocupa, pois mostram claramente que, apesar da sua diversidade e até irredutibilidade, as metafísicas de Aristóteles, de Descartes e de Hegel têm, pelo menos, de comum a concepção de que o desenvolvimento dos saberes científicos se produzem dentro dos fundamentos estabelecidos pelo saber filosófico, do qual seriam como que a explicitação. Este é o ponto em que principalmente cumpre fixar a atenção, pois é dele que depende a justificação racional da autonomia ou da dependência do saber científico.


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