Saber e filosofar

Qualquer destas metafísicas é expressão da Filosofia corno saber fundamentador e sistemático, no qual a luz da inteligibilidade é levada ao conjunto da factualidade em todas as suas regiões. Graças às profundas sondagens de Werner Jaeger sobre a génese e a desenvolução do pensamento de Aristóteles, não pode hoje dizer-se afoitamente que o Estagirita haja pensado com decisão sistemática, mas é fora de dúvida que os livros que compõem a Metafísica contêm potencialmente um sistema, que a Escolástica explicitou numa explicação de tipo vertical que vai do protótipo eterno ao conceito científico e deste ao fenómeno sensível e transiente. Descartes, e na sua directriz, mais acentuadamente, Espinosa, pensou o Universo corno existência lógica e cadeia de deduções, na qual cada ponto e cada momento do processo físico têm sentido em função da totalidade; e Hegel, sob o impulso genial do mais audacioso e confiante panlogismo, concebeu o Universo como Ideia que se realiza, cometendo à Filosofia a missão soberana de mostrar que a Razão penetra e tece o acontecer natural e histórico.

Qualquer que seja a margem concedida à observação e à experimentação, estas sistematizações somente reconhecem um plano de inteligibilidade e um único tipo de explicação perfeita. Ora a história da constituição das ciências particulares é o protesto claro e decisivo contra a absorção do saber pelo filosofar.

Com efeito, ela mostra que as ciências positivas não só se fundaram fora e independentemente de qualquer concepção do saber filosófico entendido como saber de princípios, de fundamentos ou de causas, senão que se desenvolveram mediante a aplicação de métodos que não têm em vista a dedução analítica ou transcendental.

Demais, as ciências não nasceram da Filosofia. Pelo contrário, o progresso dos conhecimentos científicos, tanto em extensão, como em profundidade e fecundidade, produziu-se em detrimento do objecto da Filosofia e da ambição do filosofar o esclarecer mediante a constituição de um saber puramente dialéctico, não assente diretamente na positividade da Natureza e que se não constitui como síntese da razão e da experiência.

As ciências particulares constituem-se como delimitação do respectivo objecto e desenvolvem-se com a indagação metódica deste objecto e em contraposição do saber não científico, seja qual for a forma com que este se apresente. Por isso, o saber científico é um saber que radica era zonas limitadas do cognoscível, em dado “horizonte de realidade”, no perfeito dizer de Gonseth, caminhando com tanto mais segurança quanto mais delimitados e precisos forem os seus problemas e mais firmes e impessoais os seus métodos; e por isso ainda, a antítese do pensar científico consiste em opinar sem conhecimento exato do objecto dos problemas, sem a objectividade da metódica e sem o exame prévio das dúvidas.

Tanto basta para mostrar que cumpre procurar noutra concepção a resposta que indagamos acerca da relação do saber e do filosofar.

De modo geral pode dizer-se que desde a instauração da scienza nuova, no século XVII, o acesso à credibilidade de qualquer afirmação racional depende de ela se apresentar sob a forma mental de um conhecimento científico. Com mais ou menos resistência, esta conformação tem atingido progressivamente círculos de raio cada vez maior, a ponto de se haverem tornado intoleráveis as construções intelectuais que pretendam o assentimento e não sejam expressão coerente de conceitos mais ou menos claros e exatos; por isso, seja qual for o teor dos juízos, é-nos necessário que antes de mais eles se apresentem com razão suficiente, isto é, coerentes com o saber exato e actual.

Daqui o problema: se o dado primeiro de todo o pensamento que aspira à veracidade tem de radicar no saber exato e de se exprimir sob a forma mental em que se articulam os conhecimentos cientificamente exatos, é possível outro filosofar que não seja o da redução do pensamento ao saber científico ?

A resposta negativa, ou por outras palavras, a absorção do filosofar pelo saber, constitui a característica do positivismo.

Na estrutura, o positivismo é uma atitude que estatui corno dado de toda a atividade consistente do espírito a existência de factos de observação e de experimentação. Partindo desta base, podem dar-se direcções diversas, e, com efeito, desde o Curso de Filosofia Positiva de Auguste Comte ao chamado “Círculo de Viena” dos nossos dias não faltam as correntes filosóficas de direcção positiva, como o empírico-criticismo de Mach e de Avenarius, o energismo de Ostwald, o imanentismo de Schuppe, o monismo evolucionista de Ardigó.

Podem, pois, designar-se de positivas correntes muito diversas; no entanto, somente consideraremos a que brotou do Curso de Filosofia Positiva de Auguste Comte, não só por mais característica como em atenção também à difusão e influência que alcançou em terras de fala portuguesa, onde não foi e não é moda filosófica, embora seja uma filosofia que já não está na moda.

Para Comte, o pensar consistente e coerente tem por objecto a indagação e verificação de factos e o descobrimento das relações de semelhança, coexistência e sucessão que entre eles existam.

Coerentemente, Comte identificou a Filosofia com a enciclopédia do saber científico. Os problemas filosóficos tradicionais perdiam, consequentemente, razão de ser e quando a tivessem não deviam ser esclarecidos por processos diferentes dos que conduziam ao conhecimento científico. Como disse Goblot, na linha desta positividade rasante, “o conhecimento que não é científico não é conhecimento, é ignorância” (Lógica).

Saber e filosofar têm, pois, idêntico sentido e alcance: constituir com exactidão o estudo da factualidade em todas as suas manifestações.

O único saber verdadeiro e útil é o saber cientificamente demonstrado ou verificado, e com ele tem de se satisfazer o espírito que não queira correr atrás de ficções ou dar crédito a afirmações que não procedam da atitude e da metodologia científicas.

O esforço cognitivo não pode ultrapassar a perceptibilidade dos fenómenos e respectivas leis de sucessão e de coexistência, pelo que perde sentido a indagação das causas e o saber somente se define como conhecimento da legalidade e não como explicação.

O pendor natural do chamado espírito prático e a ostensividade dos progressos científicos em contraste com a incongruência de algumas lucubrações de filosofia da Natureza estabelecidas por via dialéctica, como as de Hegel, parecem dar solidez a esta concepção —, e não só solidez, senão também justificação histórica, como desenlace de um processo mediante o qual ela se apresenta, como julgava Comte, como remate da evolução do pensamento, concretizada no que ele chamou a “lei dos três estados”: teológico, metafísico e positivo.

A validade universal, a extensão, profundidade e alcance dos saberes científicos determinaram corno que a depuração do filosofar, compelindo o filósofo a pensar não só com coerência mas ainda com consistência —, e não só depuração senão também aprofundamento, como se verifica actualmente com as correntes de matematização e da Lógica “vinculada às coisas”.


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