Saber e filosofar

A forma mentis do cientista tornou-se a forma mentis do filósofo, principalmente se se entender por forma mentis o conhecimento do processo mediante o qual se formula a conclusão ou resultado e sem o qual se abre passo à invasão do opinar e do pressentir.

Esta é a grande e benemérita influência do positivismo, apesar de não ter conseguido cortar de vez a amarra da Filosofia à Literatura, mas unidade de forma mentis não quer dizer idolatria científica e, consequentemente, que o saber e o filosofar se confundam e identifiquem.

Saber e filosofar são exclusivamente tarefa da razão, que é uma e não muda como o camaleão com a aparência dos objectos que tem diante de si; divergem, no entanto, pela extensão da teoreticidade e esta divergência fere mortalmente a concepção positivista que nos ocupa.

Com efeito, o saber estritamente científico é um saber que implica pressupostos e conexões complementares que ultrapassam o âmbito próprio da Ciência e a problemática a que ela responde com a metodologia de demonstração e de verificação que lhe é própria.

Pelo teor, é um saber que se apresenta exato e de uma certeza constrangente, isto é, uma certeza que não carece de outro fundamento além do processo metodológico mediante o qual se constituiu e se concretizou em resultados de evidência racional.

Além disto, é um saber objetivo, isto é, um saber não dependente do ser pessoal de cada um; por isso, se dá o caso das investigações propriamente científicas, mormente no que respeita à colheita de factos e à verificação experimental, poderem ser conduzidas por equipa e prosseguidas por investigadores independentes do iniciador —, o que, aliás, é impossível na inquirição filosófica original, que nasce, se desenvolve e se remata somente na mente do filósofo que problematiza e inquire a solução.

A inquirição científica é incompatível com generalidades. Tem de incidir sobre problemas precisos e limitados e somente alcançam consideração científica os conhecimentos baseados em factos obtidos por via metódica e se tornam certos pela demonstração ou verificação experimental. Só assim os conhecimentos são cientificados, ou por outras palavras se apresentam como racionalmente constrangentes e universalmente válidos, isto é não carecentes da convicção pessoal seja de quem for e valentes para todos de maneira unívoca.

A atividade científica aplica-se, pois, a coisas e problemas de sentido preciso, e por isso o saber científico somente pode dizer o que a coisa é, como é ou está, e como se comporta. Dá-nos a positividade, isto é, a coisa desarticulada no possível de elementos subjectivos, mas a positividade do saber científico, com ser imensa a sua influência social e conceptual e por maiores que se lhe vaticinem os progressos, assim em extensão como em profundidade, não satisfaz todas as aspirações do conhecimento. Pode pensar-se que, com mais ou menos vigor, palpita em cada Ciência a ambição de concorrer com sua quota decisiva para a dissipação das dúvidas supremas: a Astronomia, a constituição do Universo, a Biologia, a existência da Vida, a História, o conhecimento da Humanidade. A esta luz, e no que respeita aos conteúdos dos conhecimentos exatos, Ciência e Filosofia identificam-se porque o filosofar, entendido como explicação e compreensão dos problemas mais gerais e essenciais da existência, é, senão o remate, pelo menos a força impulsiva e o fito do saber. Supondo, porém, que esta é a realidade, o que agora não queremos examinar, nem por isso o filosofar se pode reduzir integralmente ao saber, porquanto fica fora da identificação, isto é, da teorização dos resultados estritamente científicos, a reflexão acerca do espírito científico enquanto toma consciência de si próprio. A atividade científica pressupõe a cada instante a capacidade e o valor da razão, e os problemas que este pressuposto levanta não podem ser esclarecidos com os métodos de observação e de verificação que fundamentam a constituição e apoiam a marcha do saber científico.

Por outras palavras: o saber científico é um saber que se não fundamenta a si próprio, comportando uma margem de pressupostos, de problemas e de implicações, que fica aquém ou vai além da realidade sobre que incidem a problemática e a metódica científicas. A exploração desta margem escapa em grande parte à atividade científica estritamente entendida, dado que não atinge certezas universalmente válidas, mas, sem embargo, a indagação destes pressupostos, problemas e implicações, assinala um dos mais sedutores e instrutivos capítulos da história do pensamento. O seu descobrimento, tanto ou mais que a inventiva científica, depende do génio criador, mas simplificando ao máximo a morfologia com que se tem apresentado desde o surto do pensamento reflexivo na Grécia, pode dizer-se que as indagações que ultrapassam a zona estritamente científica, embora nela radiquem, obedecem a três perguntas fundamentais: como é possível o saber científico?; em que consiste o saber científico ?; e como podem correlacionar-se os distintos saberes científicos ?

Responder a estas perguntas é filosofar, pois a resposta tem necessariamente de ir além dos dados científicos e do como em busca do quê e do porquê, bastando o estabelecimento destas legítimas e indeclináveis perguntas para mostrar que a teoreticidade filosófica se não pode reduzir à teoreticidade estritamente científica, quanto mais não seja por ascender a pontos de vista de mais largo horizonte e convergir para explicações de mais profunda compreensão.

A concepção positivista da constituição auto-suficiente da Ciência aparece-nos, assim, desprovida de base. Individualmente considerado, o sábio pode, sem dúvida, levar a cabo a sua tarefa sem apurar os pressupostos da investigação a que se devota. Forte no apoio que lhe presta o método que aplica e confiante no assentimento que alcançará mediante a aplicação do método adequado, ele não carece imediata e instantemente de saber como se constituiu a ciência que cultiva, porque existem outras ciências além da da sua especialidade aplicando métodos distintos, como e porque se criaram noções que ele utiliza inevitavelmente, como sejam, por exemplo, as de base, de princípio, de hipótese, de razão suficiente de complementariedade.

Quer isto dizer que o ato de investigar cientificamente qualquer tema concreto pressupõe um conjunto de noções que estão aquém desse ato; e não só isto, senão também que esse mesmo ato comporta implicações que vão além dele. Uma vez mais, o sábio pode deter-se na mostração exacta ou na demonstração rigorosa dos resultados que alcança. Esta é a sua meta habitual; contudo, os resultados encerram perguntas relativas ao significado que eles comportam, notadamente se cumpre serem considerados em função da categoria de coisa, de substância, de objecto, ou de relação.

A resposta transcende os limites da estrita atitude científica, visto não poder ser dada por qualquer método de observação ou de experimentação. A teorização filosófica dos pressupostos e das implicações dos resultados científicos, assim como a da sua correlação em função da coerência e da razão suficiente que o conjunto dos conhecimentos deve manter entre si, seja qual for a região da realidade a que respeitam, é, pois, inevitável e imprescindível; e esta teorização nada tem que ver com a pretensão positivista de uma síntese dos conhecimentos fornecidos pelas diversas Ciências particulares, a qual é uma pretensão incompatível com a própria concepção positivista, visto tal síntese não poder ser estabelecida nem verificada por métodos estritamente científicos.


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